Com o título “Datacenters e a Verdade de Foucault”, eis artigo de Mauro Oliveira, eletrotécnico (IFCE), mestre (PUC-Rio), PhD em Informática (Sorbonne University) ex-secretário de Telecomunicações do Ministério das Telecomunicações (autor do livro ‘Soberania Digital – Colonização & Letramento’). “O entusiasmo com os datacenters de IA expressa, no plano discursivo, aquilo que Foucault chamaria de governamentalidade: o poder que não impõe, mas conduz; que não ordena, mas persuade; que não reprime, mas modela”, expõe o articulista.
“O poder não é algo que se possui, mas uma prática que se exerce.”
Confira:
Para Michel Foucault, o poder raramente se exibe nu. Ele se manifesta por meio dos “discursos de verdade”, essa maquinaria sutil pela qual o poder produz, legitima e naturaliza o que a
sociedade aceita como verdadeiro. Disfarça-se na elegância do progresso, sob o brilho sedutor da modernidade, e se esconde em políticas que se dizem neutras. É sob essa roupagem que a verdade do poder digital se impõe em nosso tempo: silencioso, ubíquo e travestido de inovação. Ele não domina pela força, mas pela adesão; não oprime, mas seduz. Atire a primeira tecla quem não apresenta, ainda que um "tiquin" de nada, um sintoma de nerd addict!
O poder digital se vende como avanço tecnológico, mas opera como um novo regime de controle onde, numa metáfora foucaultiana, o dado substitui o corpo como objeto de vigilância, e o algoritmo assume o papel de juiz invisível das condutas. É ele quem observa, avalia e sentencia, silenciosamente, cada clique e cada desejo…. Ou você ainda acredita ser mera coincidência aquele anúncio aparecer segundos depois de você comentar, distraidamente, sobre um certo produto?
Esse é o tipo de poder que se vê quando o Brasil, em nome da inovação e da tão proclamada “soberania digital”, releva os riscos ambientais e o consumo voraz de energia e de água, como quem planta bytes e colhe fumaça, enquanto concede isenções fiscais bilionárias às big techs para que aqui ergam seus datacenters, as novas catedrais do poder informacional. Sempre que converso com meus amigos marcianos na Dona Mocinha, eles perguntam: qual é o limite deles … e o da nossa ingenuidade?
Nesse “discurso de verdade” que legitima o progresso, a “nuvem” se apresenta como limpa, sustentável e democrática … até quando? Na prática, é o panóptico de silício: uma estrutura monumental que vigia, acumula e monetiza dados; nada devolve em transferência tecnológica e necas de empregos após sua instalação.
O mais inquietante é o entusiasmo do colonizado, essa euforia quase infantil diante do brilho tecnológico importado. A promessa de modernidade encobre o velho gesto colonial: oferecemos território, energia e silêncio em troca de … de quê mesmo?
O poder, diria Foucault, é mais eficiente quando o governado acredita estar sendo beneficiado. Desletrado nos fundamentos do poder digital, o Brasil aplaude o espetáculo da inovação enquanto assina, sorridente, sua própria dependência, pagando caro pelo ingresso e ainda agradecendo pela colonização em alta resolução. Ou você tá vendo acadêmicos e lideranças preocupadas?
O Regime Especial de Tributação para Serviços de Data Center (REDATA) é vendido como um pacto de futuro neste, mas opera como o que Foucault chamaria de “regime de verdade”, um
conjunto de enunciados cuidadosamente construídos para legitimar o poder e fazê-lo parecer natural e benéfico.
A verdade proclamada é sedutora: “atrair datacenters é sinônimo de desenvolvimento”. Sob esse enunciado, o país se oferece como território dócil, trocando soberania por promessas de
investimento e manchetes tecnocráticas. A retórica não tem, necessariamente, compromisso com a verdade.
Na prática, o REDATA concede suspensão de PIS, Cofins e IPI às empresas que instalarem datacenters no Brasil em troca de contrapartidas mais “peba” que caldo de bila: apenas 2%
destinados a P&D e 10% da capacidade reservada ao mercado interno. O resultado é um banquete tributário em que as big techs se fartam e o país fica com as migalhas. Na verdade (qual delas???), o regime, desenhado sob o pretexto da inovação, acaba favorecendo companhias estrangeiras que nem sequer prestam serviços a clientes brasileiros, já que PIS e Cofins são tributos não cumulativos. As empresas nacionais, estas sim, poderiam compensar parte desses valores via crédito tributário, mas ficam com o resto do caldo: o ônus sem o bônus.
Enquanto o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) sonhava com uma “nuvem soberana”, verde e descentralizada, o REDATA escolhe o atalho colonial: o velho vício de importar o que deveríamos criar e de aplaudir o que deveríamos regular.
É a colonização digital do Zé da bodega em sua forma mais sofisticada: silenciosa, sedutora e legitimada pelo “discurso da verdade”. Como no panoptismo foucaultiano (mecanismo de controle contínuo e internalizado), esse modelo atua de forma invisível, agora disfarçada sob o manto da conectividade. O poder circula por cabos de fibra óptica e centros climatizados, convertendo dados em valor e cidadãos em mercadoria. A vida se torna administrável, previsível e monetizável, tudo em tempo real e com cashback. Ou você é daqueles que ainda hesita em entregar o CPF em troca de desconto no Malbec? Pois é, eu também sou refém dessa aí … só que agora o cárcere vem com Wi-Fi e perfume francês.
Nesta luta desigual do rochedo contra o meio ambiente, as comunidades locais continuam fora do mapa e da mesa. Não são vistas como sujeitos políticos, mas tratadas como paisagem a ser
administrada. Seus territórios são negociados em gabinetes, suas águas desviadas para resfriar máquinas, sua energia “despriorizada” em nome da eficiência econômico digital.
“Arre égua”… enquanto o silício se aquece, o sertão se cala. E seus futuros, hipotecados, seguem servindo a um progresso que passa por cima, mas não por dentro, reluzente na superfície, mas cego para o chão onde pisa. A modernidade avança a gigawatts, mas esquece de olhar nos olhos de quem carrega os cabos. Levanta aí a mão quem soube de alguma consulta pública, audiência comunitária ou convite às entidades locais para opinar sobre as decisões que as afetam.
O entusiasmo com os datacenters de IA expressa, no plano discursivo, aquilo que Foucault chamaria de governamentalidade: o poder que não impõe, mas conduz; que não ordena, mas persuade; que não reprime, mas modela. Entre algoritmos e decretos, o “convencimento”; não se dá mais pela força, mas pela adesão e o controle, agora, se vende embalado em liberdade, com design minimalista e sustentabilidade. É a velha dominação reprogramada em linguagem de startup: sorridente, eficiente e “user friendly”.
Se Michel Foucault viesse hoje ao Pirambu Innovation, talvez sorrisse com ironia e rabiscasse na parede do Chico da Silva:
“O biopoder agora veste fibra óptica e fala em gigawatts.”
Afinal, governa-se pela informação, vigia-se pelo algoritmo, recompensa-se pela docilidade, aquela em que o colonizado é treinado para obedecer sem perceber que obedece.
Hummm… um filósofo recém-saído do Pinel, tomando uma Ypióca (sem metanol) no Canecão, talvez cochichasse que o poder só trocou de roupa: os carcereiros viraram servidores, as celas,
datacenters, e os relatórios, dashboards reluzentes.
Exagerado, esse bebum… né, ou não?
Não seria este cenário o reload contemporâneo do consagrado, e ainda tão atual,”Vigiar e Punir”?
Sei não, viu… talvez só tenham atualizado o sistema. Agora ele é digital, silencioso e vem com selo verde de sustentabilidade. Nem precisamos de guardas ou muros: nos vigiamos sozinhos!
“Compreender o poder é o primeiro passo para não ser dominado por ele”
*Mauro Oliveira
Eletrotécnico (IFCE), mestre (PUC-Rio), PhD em Informática (Sorbonne University). Foi secretário de Telecomunicações do Ministério das Telecomunicações.