“Num país onde a ausência de memória constitui um entrave à formação de brasileiros, deve-se celebrar todo esforço para esclarecer episódios do passado”, aponta o jornalista Paulo Moreira Leite
Confira:
Num país onde a ausência de memória histórica constitui um entrave permanente à formação de brasileiros e brasileiras, deve-se celebrar todo esforço honesto para esclarecer episódios relevantes do passado, bem como apresentar personagens que tiveram um papel de relevo na construção de uma nação ainda em busca de seu destino histórico.
Esta observação ajuda a compreender a relevância das 215 páginas do livro “Inocêncio Uchôa – uma vida de compromisso com a classe trabalhadora, com o país e com a democracia“.
Publicada pela editora Kotter, a obra se define como relato autobiográfico de um jurista que hoje, aos 81 de idade, acumulou pelo menos seis décadas de militância política, fosse nas lutas contra a ditadura militar e pelos direitos dos trabalhadores, através de organizações clandestinas ou dentro do PT, em Fortaleza ou no Rio de Janeiro.
Na juventude, como liderança estudantil, Inocêncio participou de congressos da UNE, inclusive quando a repressão tornara obrigatória a realização de encontros na clandestinidade. Mais tarde, titular de um dos escritórios de maior prestígio fora do eixo Rio-São Paulo, tornou-se uma das referências indispensáveis nos debates sobre a Constituinte e outros temas que o país enfrentou.
Nascido e criado em Aracati, no Ceará, formado em Direito, titular de uma cultura jurídica muitíssimo acima da média, a junção de conhecimento erudito e combatividade política fizeram de uma das principais referências jurídicas fora do eixo Rio-São Paulo ao longo de décadas.
Na conjuntura de 1968, marco da geração que ocupa o centro do livro, ocorreu um debate político que refletia as divergências entre partidos e governos de esquerda em escala mundial e essa situação chegava ao movimento estudantil, como é fácil imaginar.
Os dirigentes estudantis Luiz Travassos, José Dirceu e outras lideranças ligadas ao Partido Comunista, a ALN e também ao PCdoB, ocupavam a direção da maioria das entidades estudantis. Já Inocêncio Uchoa e seus companheiros se organizavam em organizações que reivindicavam seguir uma orientação trotskista, como o POR (iniciais de Partido Operário Revolucionário) e FBT (para Fração Bolchevique Trotskista). Tiveram um papel até relevante, em vários momentos, mas muitas vezes numa posição minoritária e menos influente.
Valioso pelo material bruto que oferece ao leitor, o livro apresenta uma carência. Muitos depoimentos são importantes, os relatos em primeira mão também.
Mas, quando se recorda que o livro tem o universo político de 1968 como cenário e as disputas políticas do período como matéria-prima, é preciso admitir um ponto importante. Informações tão valiosas e relatos tão surpreendentes teriam sua relevância melhor compreendida pelo leitor de hoje se o livro tivesse tido uma preocupação em ser didático, explicando e traduzindo debates ideológicos que eram difíceis de compreender em seu devido tempo — e podem se mostrar ainda mais impenetráveis nos dias de hoje.
Alguma dúvida?
Paulo Moreira Leite é jornalista e comentarista na TV 247