“Entre escadarias e abismos: a indiferença que mata” – Por Suzete Nocrato

Suzete Nocrato é jornalista e mestre em Comunicação Social da UFC. Foto: Arquivo Pessoal

Com o título “Entre escadarias e abismos: a indiferença que mata”, eis artigo de Suzete Nocrato, jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará. Ela narra episódio vivido no Peru, com a família, e que, por pouco, não acaba em tragédia.

Confira:

A morte de Juliana Marins, jovem publicitária que caiu durante uma trilha em um vulcão na Indonésia, é um grito abafado pela indiferença. Ela passou três dias sem água, comida e roupas adequadas para o frio. Quando finalmente foi encontrada, seu corpo já não respirava. Restava ali apenas a presença muda do abandono — uma desumanidade difícil de nomear.

Vivemos tempos em que mísseis hipersônicos cruzam os céus quinze vezes a velocidade do som, em que bombas perfuram montanhas e destroem bunkers a dezenas de metros de profundidade. E, no entanto, não somos capazes de resgatar, a meros 200 metros de distância, uma jovem de 26 anos em um terreno acidentado. Juliana morreu à vista de todos — e, paradoxalmente, como se fosse invisível.

Seu sorriso, agora congelado em fotografias, é um alerta cruel de que qualquer um de nós pode ser jogado no abismo da negligência de operadoras de turismo e guias despreparados que conduzem vidas como se fossem pacotes descartáveis. Eu sei, porque vivi com meus três filhos e minha nora uma experiência que poderia ter terminado exatamente como a dela.

Foi em julho do ano passado, durante uma viagem ao Peru. Depois de explorar Cusco, o Vale Sagrado dos Incas e Machu Picchu, decidimos estender a viagem até o lendário Lago Titicaca. Da cidade de Puno, partimos de barco para conhecer as ilhas Uros — flutuantes, encantadoras, feitas de totora, e habitadas por famílias que preservam uma cultura milenar com dignidade comovente.

Talvez devêssemos ter parado ali. Mas a sede de ir além nos levou até a Ilha Taquile — Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco. Seu ponto mais alto está a 4.050 metros acima do nível do mar, na fronteira com a Bolívia. Chegar até lá requer preparo físico, aclimatação para enfrentar a altitude… e, sobretudo, responsabilidade de quem conduz o caminho. Preparei-me como pude. Respeitei os sinais do corpo. Mas nada me preparou para o que viria. Em questão de horas, um passeio turístico transformou-se em um drama real, com contornos de tragédia.

Logo ao desembarcar no porto de pedra, fomos avisados de que caminharíamos sete quilômetros margeando a Ilha Taquile. Antes, teríamos de subir uma escadaria de 567 degraus. Era como escalar o céu. Minha nora, de 32 anos, começou a passar mal antes de chegar ao topo. A respiração falhava. O oxímetro marcava pouco mais de 80%. Alertei o guia. Ele respondeu com indiferença: não podia ficar conosco, pois precisava conduzir o restante do grupo – oito pessoas de diferentes nacionalidades – até uma apresentação folclórica. Naquele momento, o que poderia fazer era nos esperaria na praça principal.

Ninguém — nem o guia, nem os turistas — demonstrou preocupação. Ficamos sozinhos, por nossa conta e risco. Na ilha, não há carros nem motos. Levamos quase duas horas para vencer o trajeto, parando a cada 100 metros para que minha nora recuperasse o fôlego. O guia não trazia kit de primeiros socorros, oxigênio, ou uma palavra de apoio. Apenas um frasco de “água de lórida”, uma fragrância popular no Peru, com pretensões curativas e eficácia duvidosa. Felizmente, nós carregávamos oxigênio portátil —impedindo que o mal-estar se tornasse algo pior. Ao longo do percurso, o guia nos procurou uma única vez, e não para ajudar, mas para pedir que andássemos mais rápido — como se o sofrimento fosse uma escolha.

Minha revolta só aumentou na volta ao Brasil. Enviei uma denúncia formal à operadora de turismo — renomada na Europa, com quem já havia viajado pelo Velho Continente e Ásia, sempre com serviço de excelência — e recebi, como resposta, um e-mail seco:“não há provas suficientes”, mesmo eu tendo enviado fotos e vídeos anexados à reclamação. Fico a me perguntar quais provas esperava? Um atestado de óbito para, só então, oferecer desculpas? A dor precisa de certidão para ser reconhecida? A negligência só tem nome quando vira manchete? Vivemos anestesiados por um mundo que finge normalidade diante da desumanidade, terceirizando culpados e revitalizando responsabilidades. Vivências sonhadas, embaladas como experiências memoráveis podem virar pesadelo. No caso de minha família, por pouco, não terminaram em tragédia.

Juliana não teve essa chance. Sua história se apagou no meio de um vulcão. E ainda assim, talvez nada mude. Porque, enquanto o lucro seguir acima da vida, a próxima vítima já está a caminho.

*Suzete Nocrato

Jornalista e Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

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