“Entre o fato, a fonte e a fé” – Por Rafael Mesquita

Rafael Mesquita é jornalista e presidente do Sindjorce. Foto: Divulgação

“O texto da colunista nos coloca diante de um espelho retrovisor incômodo: o método consagrado na Lava Jato, em que o “disse me disse” institucional, muitas vezes, atropelou o rito da prova material”, aponta o jornalista Rafael Mesquita

Confira:

Quando se trata de personagens centrais da vida pública – e, neste caso, eu arriscaria dizer, da figura hoje mais popular do Judiciário brasileiro – é preciso, como disse o compositor, “estar atento e forte”. Isso porque atores como Alexandre de Moraes, o Xandão, tanto para fãs quanto para haters, funcionam como verdadeiros detonadores imediatos de reação. O que se diz sobre ele circula rápido, produz resposta instantânea e é lido das mais variadas formas no tabuleiro ideológico e na disputa de poder do Brasil do final de 2025, já às portas de 2026.

É nesse terreno minado que chega a coluna de Malu Gaspar, publicada na última segunda-feira, 22 de dezembro, no jornal O Globo. No texto, a jornalista afirma que o ministro Alexandre de Moraes teria procurado o presidente do Banco Central do Brasil, Gabriel Galípolo, durante a análise da venda do Banco Master para o BRB. O banco, liquidado em 18 de novembro, mantinha contrato com o escritório de advocacia da esposa do ministro, Viviane Barci de Moraes, com honorários de R$ 3,6 milhões mensais, segundo a própria coluna.

E onde mora o problema? O texto da colunista nos coloca diante de um espelho retrovisor incômodo: o método consagrado na Lava Jato, em que o “disse me disse” institucional, muitas vezes, atropelou o rito da prova material.

Mas vamos aos pontos. O caso tem duas camadas, e misturá-las é que dá ruim.

A primeira camada tem materialidade. Tem chão. Tem peso. O contrato milionário envolvendo o Banco Master e o escritório ligado à esposa do ministro é um dado que existe. É o tipo de informação que sustenta escrutínio público sem precisar de torcida. Ali há conflito de interesse potencial, há dever de transparência, há pergunta legítima, há incômodo real. Isso, por si só, já acende luz vermelha. Não precisa inventar nada em cima para ser grave.

A segunda camada é a imputação que incendiou o debate público: a ideia de que Moraes teria procurado o presidente do Banco Central para pedir, interferir, pressionar, abrir caminho – qualquer verbo desse campo semântico que o leitor entende na hora. E aqui o jornalismo atravessa uma fronteira que exige mais, muito mais, do que bastidor.

O que sustenta essa camada é fonte. Seis fontes (dado enfatizado na primeira versão do texto que circulou nas redes sociais). Relatos. Gente que diz que ouviu. Gente que diz que soube. Gente que diz que a conversa foi assim. E eu não tenho nada contra fonte anônima. Defendo o sigilo da fonte como pilar democrático, sem titubeio. Mas também sei, por formação e por ofício, que fonte não é prova. Fonte é caminho. É seta. É trilha para chegar à prova, não para substituí-la.

O tempo passou. Vieram outras notas, outras rodadas, outras versões. Noticiou-se que o ministro negou o conteúdo que lhe foi atribuído, depois detalhou que houve encontros com Galípolo, com datas, e afirmou que o assunto tratado teria sido outro – Magnitsky, não Banco Master. Noticiou-se também que o Banco Central se manifestou, no sentido de negar que o teor da conversa fosse aquele sugerido pela coluna. E, no meio disso tudo, a pergunta que deveria ter ficado maior do que o barulho continuou pequena: onde está a substância material do ato que se atribui?

É aqui que o jornalismo precisa parar de correr atrás da repercussão e voltar para o método.

Se a imputação é de pressão institucional, o que existe de material para demonstrar essa pressão? Há gravação? Há mensagem? Há e-mail? Há registro verificável do teor? Há alguma materialidade que não dependa de a gente acreditar? Porque, quando tudo o que o público tem é o relato, o leitor é empurrado para um lugar que considero perigoso: o da crença.

E jornalismo não é crença.

Não estou dizendo que seja mentira. Não estou distribuindo atestado de inocência a ninguém. Não estou pedindo blindagem para ministro algum. Estou dizendo que a hierarquia das coisas importa. A materialidade do contrato existe e é inescapável. Já a materialidade da suposta interferência, do jeito que foi colocada no debate público, segue sem aparecer na mesa do leitor. E quando uma imputação dessa gravidade passa a sobreviver mais de adjetivos do que de evidências, o que se instala não é investigação. É tensionamento político.

E, no Brasil de hoje, isso vira combustível.

O que mais me inquieta, nesse ponto, é observar como o ecossistema editorial consegue transformar uma imputação em dado consolidado por repetição interna. Sai uma coluna. Depois vem outra. Depois vem outra análise. Depois vêm colegas no mesmo jornal tratando como se a parte mais grave já estivesse demonstrada. A história se solidifica não porque ganhou prova, mas porque ganhou coro. E coro não é checagem.

E não é pouca coisa dizer isso. Porque eu não estou escrevendo daqui como comentarista de Brasília, nem como plateia do poder. Escrevo do lugar em que a credibilidade é o que nos mantém de pé. Na vida real do jornalismo, essa palavra não é abstrata. Credibilidade é salário, é segurança, é direito, é prerrogativa, é sobrevivência. É o patrimônio mais coletivo que existe entre nós. Por isso, quando o método balança, quem treme não é só a instituição alvo. Quem treme é o jornalismo.

Há ainda uma ironia que dói, porque revela nossa crise de método. O próprio Grupo Globo ajudou a ensinar ao país, por meio de ferramentas de checagem, que afirmações fortes exigem evidências fortes. Que não basta “disseram”. Que não basta “fontes”. Que não basta “bastidores”. Um Fato ou Fake da vida não trabalha com repercussão. Trabalha com lastro.

É exatamente por isso que digo, sem chamar de mentira e sem precisar chamar de verdade, que essa imputação, do jeito que foi apresentada ao público, dificilmente atravessaria um funil rigoroso de checagem factual. Não por falta de relevância. Pelo contrário, por excesso de relevância. Quanto mais grave a imputação, maior deveria ser o grau de demonstração.

Há ainda um ponto que precisa ser dito de forma simples, quase pedagógica, para não nos perdermos no delírio coletivo de manchetes: não cabe, neste momento, ao ministro provar o que ele já negou ter feito. Depois de dias de colunas e adjetivos jogados ao vento, chega a hora da substância material. O ônus da prova não se inverte porque a narrativa é atraente, porque a conjuntura é favorável ou porque o personagem é antipático ao gosto político de alguém; inclusive se esse alguém for acionista do jornal. O ônus da prova pertence a quem atribui. No direito e, eu diria, também no jornalismo que pretende continuar sendo ponte, não arma.

Se o jornalismo quiser proteger a democracia, precisa proteger primeiro o próprio método. Porque, quando naturalizamos que relato substitui prova, abrimos um precedente que não para em Brasília. Amanhã pode ser qualquer um. Pode ser uma redação, um repórter, um sindicato,

uma liderança social, um professor, um jornalista de cidade pequena, que vira alvo de uma narrativa forte sem lastro verificável. E aí, meu amigo, minha amiga, o jornalismo vira aquilo que sempre prometeu combater: um tribunal de exceção no espaço público.

Sigo achando que há um fato sólido ali: o contrato, o conflito potencial, a exigência de transparência. Isso não sai de cena. Mas também sigo achando que, enquanto a imputação de interferência não vier acompanhada da prova material que sustente o que se diz, o que se tem é uma história poderosa sustentada mais por convicção do que por demonstração.

E convicção, aprendi cedo, pode ser muita coisa.

Só não pode ser método.

Rafael Mesquita é jornalista e presidente do Sindicato dos Jornalistas do Ceará (Sindjorce)

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