“Por que todo benefício dado ao trabalhador é considerado uma ameaça à economia, se é o trabalhador quem a movimenta?”, aponta o músico e jornalista Nêggo Tom.
Confira:
Numa quinta-feira, 26 de abril de 1962, a edição do jornal O Globo estampava na capa a preocupação dos empresários, articulada por Roberto Marinho, dono do jornal, com a gratificação de Natal que seria dada ao trabalhador: o 13º salário. Sob a manchete “Considerado desastroso para o país um 13º mês de salário”, o jornal criticava duramente o projeto de autoria do deputado federal Aarão Steinbruch (PTB), proposto três anos antes, ainda no governo de Juscelino Kubitschek. Descrita pelo jornal como “mal recebida nos meios econômicos e financeiros”, a proposta aprovada na Câmara também serviu de combustível para o planejamento do golpe militar, assim como a posterior deposição do presidente João Goulart, em 1964, e a cassação do mandato de Aarão Steinbruch pelo AI-5, em 1968.
Com direito a nota da FIESP no próprio jornal O Globo, dois dias após a aprovação do projeto na Câmara, o empresariado paulista vociferava e dizia que a “gratificação serviria para alimentar com um excelente combustível a fogueira da inflação, que, pouco a pouco, devora o país.” Porém, diferentemente do atual quadro social do país, os trabalhadores se organizaram através de seus sindicatos, uniram forças e promoveram uma luta de classes contra o empresariado, pressionando o governo e o parlamento pela realização das reformas de base da agenda trabalhista. Direita e esquerda já promoviam grandes embates políticos, e uma greve geral deu o tom da luta da classe trabalhadora por seus direitos. Algo, infelizmente, inimaginável nos dias atuais.
O desastre previsto pelo mercado financeiro e pelo empresariado não veio, e a economia passou a ser ainda mais fomentada com a implementação da gratificação que, hoje em dia, é sinal de lucro para os comerciantes nas vendas de Natal e final de ano. Na verdade, o 13º salário é praticamente uma farsa, uma gratificação que remunera o trabalhador pelos dias que ele já trabalhou durante o ano e não recebeu por isso. Tomemos como exemplo um trabalhador que ganhe R$ 2.000,00 por mês. Teoricamente, o seu rendimento anual seria de R$ 24.000,00 (2.000 x 12 meses), que, com o acréscimo do 13º salário, faria esse rendimento anual chegar a R$ 26.000,00. No entanto, para efeito de pagamento, um mês tem 4 semanas, o que implicaria dizer que esse trabalhador ganha R$ 500,00 semanais, durante um ano que tem 52 semanas. Multiplicando R$ 500,00 por 52 semanas, chegamos aos R$ 26.000,00 anuais que o trabalhador atinge com a gratificação do 13º. Ou seja, não existe gratificação.
O projeto da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), que prevê o fim da escala 6×1 e levanta um debate importante sobre “transformar as garantias conquistadas por determinadas categorias profissionais em direito para todos os trabalhadores brasileiros, especialmente, requerendo o fim da escala 6×1 e a adoção da jornada de 4 dias no Brasil”, como ela descreve no texto do projeto, pode também fazer justiça à farsa do 13º salário, além de proporcionar aos trabalhadores uma melhor qualidade de vida. Assim como os parlamentares, que trabalham apenas 3 dias por semana, gozam de mais de 30 dias de férias, e ainda desfrutam de um recesso de 15 dias no meio do ano. Sem falar no excelente salário e nos demais benefícios que a função parlamentar lhes garante. Um sonho para qualquer trabalhador.
Tal como em 1962, o mercado e o empresariado estão gritando através da mídia hegemônica e de parlamentares que se posicionam contra o projeto que beneficia a classe trabalhadora. Marco Feliciano, mais um dos pastores federais e deputados evangélicos que infestam o Congresso Nacional, chegou a chamar o projeto de “excrescência” e disse que, nos EUA, as pessoas trabalham até a exaustão para ver prosperidade. Algo que ele nunca precisou fazer, porque “Deus” lhe fez próspero por meio do trabalho exausto dos fiéis de sua igreja. Que, inclusive, pagam o dízimo do 13º salário que recebem. Feliciano também participou de uma live com o influenciador Monark, onde defendeu o fim das férias, do 13º e das horas extras. Uma prova de que o trabalho (escravo) enobrece o homem e enriquece picaretas e charlatões como ele, e Silas Malafaia, que também já se posicionou contra o fim da escala e, ao lado de Bolsonaro, então presidente, defendeu o fim dos direitos trabalhistas para a geração de mais empregos. Eu gostaria de saber o que os fiéis de suas igrejas acham sobre os seus posicionamentos. Talvez seja melhor não querer saber.
O debate sobre o fim da escala 6×1 está posto. O governo promete monitorar as discussões e se posicionar em breve. Há quem tema que esse movimento se torne uma nova edição dos “20 centavos” e que sirva de armadilha para desestabilizar o relacionamento do presidente Lula com a classe trabalhadora. Em se tratando de política brasileira dos dias atuais, tudo é possível. Até mesmo, parte da classe trabalhadora ficar contra o projeto e acusar o presidente Lula, caso o governo apoie a medida, de estar destruindo empregos. Como eu pude presenciar, pasmo e pálido, trabalhadores atacarem a presidenta Dilma quando ela aumentou o salário acima da inflação, dizendo que eles perderiam seus empregos por sua culpa. Os especialistas já estão fazendo previsões e alardeando que o fim da escala 6×1 representa um aumento de custos para as empresas e pode deixar os trabalhadores desprotegidos. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos e fiquemos com uma reflexão: Por que será que todo benefício dado ao trabalhador é considerado uma ameaça à economia, se é o trabalhador quem a movimenta?
Ricardo Nêggo Tom é músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas “Um Tom de resistência”, “30 Minutos” e “22 Horas”, na TV 247, e colunista do Brasil 247