“A ordem para a molecada de 10, 11 anos era de se comportar diante daquela figura apresentado pelas freiras da direção da escola como supervisor da Secretaria de Educação”, aponta o jornalista Paulo Rogério
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Uma das minhas memórias mais marcantes da infância é a de meu pai me aconselhando a não ficar muito tempo no telefone, conversar de forma rápida e direita. A desculpa era de que a conta estava vindo alta e tínhamos que preciso economizar naqueles difíceis anos 70. E tinha mais. Ele dizia que os sons que eu estranhamente ouvia durante a ligação, como se fosse linha cruzada, era de uma espécie de taxímetro que contava o tempo de bate-papo.
Tempos depois descobri que não era bem isso que o preocupava. Lembrei muito deste momento quando assisti ao filme “A vida é bela”, do Roberto Benigni. A dura penas, papai tentava esconder de mim – como Guido fazia com o filho Giosué – da guerra que a realidade nos colocara.
Lembro nesta época de gente estranha na classe acompanhando o trabalho da professora de Educação Moral e Cívica, dona Dayse. Ela era uma mulher negra, magrinha, cabelos arrumados de forma discreta, mas que tinha um discurso seguro. Nesses dias ela explicava a lição de forma mais pausada, nitidamente nervosa com a presença daquele homem sisudo em sala de aula. A ordem para a molecada de 10, 11 anos era de se comportar diante daquela figura apresentado pelas freiras da direção da escola como supervisor da Secretaria de Educação.
Recordo ainda que a banca de jornal do seu Olavo, onde sempre comprava os pacotes com as figurinhas da Copa de 70, desapareceu. Um incêndio a transformou em cinzas. Fiquei imaginando que no meio daquele monte de papeis queimados estava o tão sonhado cromo do Pelé. “Foi um curto-circuito” me disseram. Me lembro que alguém falou em bomba, atentado. Era a primeira vez que ouvia isso. Passei a ficar mais atento.
Estranhei quando a irmã e o cunhado da D. Edite, professora de admissão do meu irmão, haviam viajado para o Chile às pressas. Não era comum na época viagens de turismo para esse país. Viajaram e deixaram os filhos com a tia que achou melhor fechar o cursinho e dispensar os alunos. Foi um sufoco em casa para achar outro local. Para quem não sabe, a admissão era uma espécie de vestibular do primário para ginasial, ou seja, da 4ª para a 5ª série.
Lembro ainda dessa época de ouvir tiros, gritos e sirene de carros de polícia, altas horas da madrugada. Não havia facções, nem guerra entre elas como tem hoje. Mas esses eram sons sempre presente nas noites de insônia, deitado em minha cama. Em um dia especial fui atrás de saber o que tinha acontecido. Uma casa de esquina, a três quarteirões de onde eu morava, havia sido metralhada por soldados do exército. A buraqueira na parede, os furos nas madeiras verdes das janelas, sangue na calçada confirmavam o acontecido. Ninguém sabia, no entanto, quem eram envolvidos. Quem sabia, se calava.
Não consigo esquecer ainda quando suspenderam o programa “Os trapalhões” que assistia todo domingo. Para uma criança, era um absurdo. Só porque eles cantaram “Esse é um pais que vai pra frente…” dançando e andando de costas. Ora, essa era a piada! Pelo menos era mais engraçada que aquela imagem insistente dos certificados da Censura Federal: liberado para maiores de 18 anos.
E o desespero estampado nos olhos de meu pai quando apareci em casa, em 1978, com um cartaz do “Che” Guevara que havia adquirido após assistir – e puxar uma onda de palmas e assovios – ao filme Z do Costa Gravas? Indescritível.
Diante de todas essas lembranças de infância fica impossível acreditar que uma geração de brasileiros e brasileiras tenha esquecido o que foi a ditadura militar no Brasil. Quem não conheceu, está aí a internet para mostrar as imagens. E o pior de tudo: ainda há grupos que lutam pelo seu retorno, erguendo a bandeira de Estados Unidos ou Israel.
É de surpreender a falta de memória dessa geração.
Paulo Rogério é jornalista e cronista (escreva às segundas) (paulorogerio42@gmail.com)
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Por falar em MEMÓRIA.
Em 22/09/1916 nascia DILERMANDO REIS, que me faz lembrar Marcha dos Marinheiros entre outros.