“Guerra híbrida é projeto – não acidente. O Brasil vive há pelo menos uma década sob um processo contínuo de desestabilização. Não é casual. Não é espontâneo”, aponta o jornalista Luís Pellegrini
Confira:
Não é teoria conspiratória. Não é exagero retórico. E tampouco é “mimimi” geopolítico. Quando, há três dias, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, deixou todos de orelhas em pé ao afirmar que a Europa enfrenta uma campanha sistemática de guerra híbrida e que os europeus devem imediatamente reagir, ela estava apenas dizendo em voz alta aquilo que democracias pressionadas já sentem na pele: o conflito do século 21 não começa com bombas – começa com mentiras, sabotagem institucional e manipulação da opinião pública.
Se isso vale para a União Europeia, vale ainda mais para o Brasil. Aqui, a guerra híbrida não chega por drones, ou aviões militares. Ela se infiltra pelo celular, pela timeline, pelos grupos de WhatsApp, pelas fake news travestidas de “opinião”, pela demonização da política e pelo ataque permanente às instituições democráticas. O método é conhecido: desacreditar o Estado, destruir a confiança social e transformar a sociedade em um campo minado de ódio e ressentimento.
A estratégia é sempre a mesma: degradação lenta, com aparência de acaso. A estratégia híbrida não busca brigar de frente; ela minimiza a visibilidade do agressor enquanto maximiza a confusão. Uma teoria conspiratória vira trending topic; um vídeo manipulado vira manchete; uma falha técnica vira prova de incompetência do oponente. Repete-se a fórmula até que a população aceite, por exaustão, narrativas simplificadas e líderes-salvadores. Von der Leyen apontou exatamente isso ao descrever uma “campanha em zona cinzenta” destinada a “desestabilizar cidadãos, testar a nossa resiliência e dividir a União”.
Exemplo miúdo? Aconteceu há pouco, aqui em casa: minha arrumadeira me procura com os olhos arregalados: “Seu Luis, uma amiga da igreja me telefonou avisando que o Lula vai cancelar o bolsa família! Isso é verdade?” “Não, é mentira, é notícia falsa”, respondi. E levei uns dez minutos para convencer a moça disso. Acho que consegui. Mas… a semente venenosa da desconfiança e do medo certamente ficou plantada naquela cabeça simples. E esse é exatamente o objetivo dos ativistas da guerra híbrida: contaminar as cabeças com o veneno da mentira, das notícias falsas, da insegurança e do medo.
No tabuleiro brasileiro, os peões são locais. Há uma ilusão confortável que insiste em ver a guerra híbrida como um produto exclusivamente “externo”. Não é. A eficácia desses ataques depende de atores internos – jornalistas amadores, perfis automatizados, militantes pagos, empresários com interesses políticos e até atores políticos que instrumentalizam a desinformação para ganho imediato. A guerra híbrida prospera quando encontra cúmplices domésticos que transformam operações estrangeiras em óleos que lubrificam a máquina do ódio nacional.
Guerra híbrida é projeto – não acidente. O Brasil vive há pelo menos uma década sob um processo contínuo de desestabilização. Não é casual. Não é espontâneo. É projeto. Um projeto que combina interesses externos e internos, plataformas digitais sem regulação, setores econômicos predatórios e forças políticas que lucram com o caos.
A guerra híbrida não precisa criar crises – ela explora crises existentes, amplia contradições reais e transforma conflitos legítimos em guerras morais absolutas. O resultado é conhecido: uma sociedade permanentemente polarizada, exausta, incapaz de formular consensos mínimos e vulnerável a soluções autoritárias.
As instituições são os alvos prioritários. Assim como na Europa, o ataque no Brasil tem endereço certo: as instituições democráticas. Sistema eleitoral, Supremo Tribunal Federal, imprensa profissional, universidades, ciência, políticas públicas – tudo vira alvo de campanhas sistemáticas de deslegitimação.
Não se trata de crítica democrática, mas de corrosão deliberada. Quando tudo é tratado como fraude, quando toda autoridade é apresentada como inimiga do “povo”, o que se prepara é o terreno para o arbítrio. A história é conhecida. E costuma terminar mal: em ditaduras fascistas, governos autocratas e outros descaminhos do gênero.
Assim, na guerra híbrida os atores internos costumam se tornar colaboradores do caos. Convém abandonar a ingenuidade. Nenhuma guerra híbrida prospera sem colaboração interna. No Brasil, ela encontra terreno fértil em influenciadores irresponsáveis, empresários que financiam a desinformação, políticos oportunistas e setores da mídia que confundem “liberdade de expressão” com vale-tudo informacional.
Esses atores não precisam receber ordens diretas do exterior. Basta que compartilhem o mesmo objetivo: enfraquecer o Estado, destruir a política e transformar a democracia em um estorvo.
O alerta europeu deveria ecoar em Brasília – Quando Ursula von der Leyen fala em “zona cinzenta”, ela descreve exatamente o estágio em que o Brasil se encontra: nem paz institucional plena, nem guerra declarada – mas uma tensão permanente que impede estabilidade, planejamento e desenvolvimento.
A diferença é que a Europa começa a reagir com coordenação, investigação e responsabilização. No Brasil, ainda há setores que tratam a guerra híbrida como delírio – enquanto repetem, consciente ou inconscientemente, suas narrativas.
Resistir é defender a democracia – sem medo. Combater a guerra híbrida não é censurar opiniões, mas enfrentar estruturas de desinformação, regular plataformas que lucram com o ódio, fortalecer o jornalismo profissional e investir em educação crítica. É, sobretudo, reafirmar a política como espaço legítimo de disputa democrática, e não como arena de extermínio simbólico.
O Brasil não está imune. Nunca esteve. Fingir normalidade enquanto a democracia é corroída por dentro é colaborar com o agressor.
A guerra híbrida já está em curso. A pergunta que resta é simples e incômoda: de que lado da história cada um escolheu ficar?
Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis