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“Kafka odiava a burocracia, escrevia com alegria e amava nadar”

O comerciante Hermann e seu filho Franz Kafka

Kafka nadador – Tenho um metro e oitenta e oito, peso quase noventa quilos e tenho os movimentos mal coordenados, exceto quando nado. Quem trabalha escrevendo é toda essa carne emprestada. Quando nado sou lindo. (Kurt Vonnegut, Jr.)

“Hoje é possível ler os escritos pessoais de Kafka, graças a seu amigo Max Brod, que não atendeu ao pedido para queimar seus cadernos quando morresse”, aponta o jornalista Flamínio Araripe. Confira:

No dia 3 de junho foi comemorado o centenário da morte do escritor Franz Kafka (1883-1924). Judeu nascido em Praga, atual República Tcheca, ele é um dos maiores nomes da literatura mundial. Odiava o seu trabalho burocrático em agência de seguros, escrevia com alegria e amava nadar.

Hoje é possível ler os escritos pessoais de Kafka, graças a seu amigo Max Brod, que não atendeu ao pedido para queimar seus cadernos quando morresse. Partiu aos 40 anos, mas deixou nos diários e cartas – também no conto “O grande nadador” – registros sobre o esporte favorito. De início, acompanhava seu pai numa escola de natação. Continuou a frequentar piscinas públicas às margens do rio Moldava, a cerca de 15 km de Praga.

Kafka, ao que tudo indica, progride no esporte e marca no seu íntimo e no diário, ao dia 7 agosto de 1914, “Os passos firmes na escola de natação”. Tinha vínculo com a Escola de Natação de Praga, no Sophieninsel, na categoria de membro anual.

No dia 2 do mesmo mês, registrou: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. — À tarde, natação”. Esquenta a Europa na I Guerra Mundial, motivo para refrescar a cabeça na piscina.

Uma entrada nos cadernos – fevereiro de 1914 – indica que Kafka nadava em águas abertas – no mar ou no rio. “Mergulhei e logo já me orientava. Um pequeno cardume passou numa corrente ascendente e se perdeu no verde”.

Na piscina, o escritor nadava, conversava com os amigos, olhava as meninas e os rapazes. Em 1917, comenta os papos na escola de natação com o dr. Oppenheimer, sobre a histórias da Praga antiga. Em 30/9/11 guardou memória no diário da moça na piscina: “os ombros bem torneados, nus, redondos, fortes e bronzeados, que eu tinha visto na natação, impunham-se à roupa”. Em 27/7/1014, escreveu: “Estive duas vezes na escola de natação em Stralau. Muitos judeus. Rostos azulados, corpos vigorosos, corridas desvairadas”.

A depressão rondava o escritor, mas procurava reagir com atividade física. É uma ideia que se tem, pelo que anotou em 29/5/1910: “De novo, quantos dias passaram-se mudos; hoje é 29 de maio. Não possuo a determinação nem mesmo para apanhar diariamente a pena, este pedaço de madeira? Creio que já não a possuo. Remo, ando a cavalo, nado, deito-me ao sol. Por isso as panturrilhas estão bem, e as coxas, nada mal; a barriga ainda vai, mas já o peito está bastante pífio”.

No livro “Carta ao pai”, leitura ainda hoje comentada por pacientes em psicoterapia, Kafka expressa a timidez de mostrar o corpo nas primeiras vezes que ia à piscina, bem jovem:

“Lembro-me por exemplo de que muitas vezes nos despíamos juntos numa cabine. Eu magro, fraco, franzino, você forte, grande, largo. Já na cabine me sentia miserável e na realidade não só diante de você, mas do mundo inteiro, pois para mim você era a medida de todas as coisas. Mas quando saíamos da cabine diante das pessoas, eu na sua mão, um pequeno esqueleto, inseguro, descalço sobre as pranchas de madeira, com medo da água, incapaz de imitar seus movimentos para nadar que com boa intenção, mas de fato para minha profunda vergonha, você não parava de me mostrar — então nesses momentos eu ficava muito desesperado e todas as minhas más experiências em todas as áreas confluíam em grande estilo. Só me sentia melhor quando você algumas vezes se despia primeiro e eu ficava sozinho, podendo adiar a vergonha da aparição pública até o momento em que você vinha ver o que estava acontecendo e me tirava da cabine”.

A natação ajuda o escritor a vencer a timidez e melhorar a autoestima, conforme se lê no diário em 15 de agosto de 1911. “O tempo transcorrido até agora, e em que não escrevi palavra alguma, foi importante para mim porque deixei de sentir vergonha de meu corpo nas escolas de natação”. Não parece que deu um tempo na atividade intelectual e foi nadar?

O biógrafo Louis Begley, em “O mundo prodigioso que tenho na cabeça”, observa que Kafka considerava “um grande obstáculo a seu progresso” as limitações físicas e por isso recorria à natação e remo, à ginástica Muller, praticava jardinagem e marcenaria. Conta que, ao reencontrar a namorada Julie Wohryzek, em 1919, caminharam nos bosques e ruas de Praga e nadaram. Relata ainda que, em carta a Max Bord, informa ter adiado a leitura de escritos do amigo pois se apresentava “tempo bom para nadar em Praga”.

Outro biógrafo, Reiner Stach – relata Aaron Schuster, no artigo “Kafka Nada” -, escreve que “a Escola Civil de Natação tornou-se um dos pontos urbanos mais importantes ao qual ele permaneceu devotado ao longo de sua vida e ao qual ele pensou com melancolia, mesmo nas últimas horas anteriores sua morte.” Cita que, em “carta à sua noiva Felice Bauer, Kafka queixa-se das recomendações do seu médico para tratar o seu esgotamento e possíveis palpitações cardíacas, em parte devido a “nadar demasiado”. Ao que reage o escritor tcheco de língua alemã, por considerar “impossível” atender à ordem médica.

Nas “Cartas a Milenal, Kafka comenta que há três anos, em um dia quente, bonito – “tudo estava em ordem fora da minha cabeça” – cuspiu algo avermelhado na piscina pública. Observa que antes disso, “eu nunca tinha sofrido dos pulmões, não havia nada que me cansasse, eu era capaz de andar horas mortas, naquela época nunca chegava ao limite das minhas forças apenas marchando (embora, naquela época, eu sempre alcançasse o limite das minhas forças ao pensar)”.

“Depois começou a acontecer com mais frequência e mesmo cada vez que expectorava produzia aquele algo vermelho, podia fazê-lo à vontade. Já não era interessante, tinha-se tornado monótono e voltei a esquecê-lo. Se eu tivesse ido ao médico naquele momento… bem, teria acontecido a mesma coisa que aconteceu sem o médico, só que naquela época ninguém sabia nada sobre o sangue — na verdade, nem eu mesmo — e ninguém se preocupava”. Indício da tuberculose que o levou em 3 de junho de 1924. Diagnosticada a doença, continuou a nadar.

Flamínio Araripe é jornalista

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Kurt Vonnegut, Jr. (1922-2007) é escritor norte-americano. Citação do livro “Mundo Louco” – Artenova).

De Kafka, Diários (1909-1912) – LP&M; “Franz Kafka – Diários (1909-1923)” – Todavia; “Blumfeld, um solteirão de mais idade e outras histórias” – Civilização Brasileira; “Cartas a Milena” – Fundación Editorial el perro y la rana (Venezuela).

Reli “Metamorfose”, de Kafka. “Isto é literatura”. A sensação da leitura é a mesma que se tem ao exclamar para si, recostado na poltrona de olho na telona – “isto é cinema” -, diante do filme de um bom diretor como Robert Altman, Sam Peckinpah, Coppola, Scorsese, Fellini., Antonioni ou Pasolini.

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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