Rir acima de tudo e de todos também pode ser fascismo, aponta o músico e jornalista Ricardo Nêggo Tom
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Sórdido, sádico, perverso, monstruoso e desumano. Essa seria a minha avaliação se eu fosse crítico de humor e estivesse num show onde o humorista fizesse uma piada com a morte de uma parlamentar que foi fuzilada covardemente por facínoras, usando a sua “licença poética” para condená-la ao inferno onde, completamente bêbada, suja o chão do lugar com o excesso de bebida que sai pelos buracos causados pelos tiros que ela levou. Que vá para o inferno Léo Lins e todos aqueles que acharam graça nesta excrescência artística que tripudia da dor da família de Marielle Franco, de seus amigos e de todos aqueles que perdem a piada, mas não perdem a humanidade diante de um crime tão hediondo.
Claramente, Léo Lins, além de estar manifestando o seu posicionamento político nessa “piada”, também está expressando o seu sadismo com o desfecho da história que ceifou a vida de uma mulher preta, de origem periférica e de esquerda. A antítese do que a branquitude da zona sul carioca, de onde o humorista é oriundo, considera como gente merecedora de dignidade e respeito. Aliás, o pacto dessa branquitude se faz presente quando vemos diversos humoristas, todos brancos, se manifestando pelo direito de exercerem seus preconceitos de forma recreativa e “artística”. O que poderia ser chamado de o reverso da função da arte como crítica social, uma vez que ao invés de questionar e provocar reflexões sobre temas culturais e sociais, como racismo e capacitismo, acaba por ratificá-los a pretexto de fazer rir. Mas não se enganem. O pacto da branquitude não é uma piada. Ou, em sendo, não é para todo mundo rir.
Não podemos naturalizar o cometimento de crimes sob a égide da licença poética. Até porque não existe licença poética que quebre as regras da lei e do respeito à existência do outro. A licença poética se aplica na quebra de regras de linguagem ou de expressão artística. “O negro reclama que não tem trabalho, mas na escravidão ele já nascia empregado e reclamava também”. Essa é mais uma “piada” perversa que torna recreativo o sofrimento e a dor de milhões de seres humanos que foram submetidos à escravização, e não pode haver graça nessas condições. A não ser para uma plateia composta por gente sórdida, perversa e desumana como Léo Lins. Alguém já disse que “por trás de uma piada há um fundo de verdade”. No caso de Léo Lins, a sua verdade transborda através piadas racistas, homofóbicas, pedófilas e de apologia ao crime, como a que foi feita sobre a morte de Marielle. Quem defende isso como liberdade de expressão perdeu a piada.
Cretino, infame e sem graça, o conteúdo humorístico produzido pelo referido artista é uma ode aos preconceitos mais enraizados na nossa sociedade, como racismo, homofobia e capacitismo. Por este motivo, faz-se necessárias muitas reflexões sobre os seus textos, sobretudo, no que tange ao seu prazer em seguir oprimindo através do que ele considera humor, grupos de pessoas historicamente oprimidas, excluídas e invalidadas em suas existências. É importante frisar também que o fato de algumas pessoas pertencentes a estes grupos minoritários comparecerem aos seus shows, ou estarem defendendo o seu direito de incitar a ridicularização de seus iguais, não serve de salvo conduto para que o infeliz humorista deixe de ser responsabilizado por seus atos. Importante também refletirmos sobre uma fala do humorista durante um de seus shows mais polêmicos.
“Para algumas pessoas, a piada pode agir como uma cura e despertar sentimentos bons, mas para outras pode agir como um gatilho e trazer sensações ruins. Mas eu acho injusto e até egoísta a dor opcional de uma pessoa servir de justificativa para impedir o sorriso de outras”, disse Léo Lins, acreditando que estaria filosofando quando, na verdade, ele apenas está dizendo “dane-se a sua dor” de forma eufêmica. Eu tenho o direito de zombar e fazer os outros rirem do que lhe causa gatilhos e sensações ruins. Até porque, a sua dor é opcional e você pode deixar de senti-la se aceitar a piada que eu faço com ela. É um tipo de “aceita que dói menos”, porque eu não vou parar de brincar com o seu sofrimento. Neste caso, alguém precisa fazer o humorista se conscientizar de que a dor do outro não é opcional, e fazê-lo parar de brincar ou ridicularizar tal sofrimento. E a Justiça se encarregou de fazê-lo. Se a condenação à prisão e a pena imposta foram exageradas e devem ser submetidos a uma revisão, é um debate que até pode ser colocado em pauta.
Parte do que Léo Lins produz e chama de arte é bullying, algo que adoece e até mata muitos adolescentes e jovens nos dias atuais. Piadas desse gênero ajudam a perpetuar estereótipos, normalizar violências e a legitimar o escárnio com aquilo que provoca dor e constrangimento a outras pessoas. Ninguém gosta de ser ridicularizado em função da sua cor, da sua raça, da sua orientação sexual, da sua deficiência. Outros segmentos da arte já começaram a rever alguns conceitos que já foram considerados aceitáveis, mas que não cabem mais nos dias atuais. Uma bisneta de Monteiro Lobato, a também escritora Cléo Monteiro, identificou a necessidade de contextualizar algumas obras do autor, e revisou frases das mesmas, principalmente, com relação à personagem tia Anastácia, por entender que o conteúdo pode ser considerado racista atualmente. Qual a dificuldade em compreender que o mundo está mudando, e o que era motivo de piada ontem, pode ser um crime hoje?
Para piorar, o humorista publicou um vídeo em seu canal do YouTube onde segue defendendo a sua obra e criticando quem questiona o seu público por rir de suas piadas infames. Sob o argumento de que rir libera endorfina e dopamina, neurotransmissores que fazem as pessoas se sentirem bem, ele ratifica o “dane-se” dado em sua “filosofia” anterior, e externa mais uma vez a essência insensível do artista contida no personagem. Prender Léo Lins soa meio absurdo, devo confessar, enquanto pensarmos que foi só por causa de uma piada. No entanto, não foi apenas por isso. Vaidoso e convicto de que é um grande pensador, ele ainda tenta emplacar mais uma frase no seu vídeo de defesa: “se rir virou crime, o silêncio virou regra”, uma premissa falsa que induz a uma conclusão mais falsa ainda, se evocarmos o compositor Frejat e o seu “rir de tudo é desespero”, verso da canção “Amor pra recomeçar”. E para quem insiste em não recomeçar, mesmo quando a capacidade de amar ao próximo parece ter se esgotado dentro de si e a sua arte se transformou em desespero, eu advirto que rir de tudo e de todos pode ser fascismo.
Ricardo Nêggo Tom é músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas “Um Tom de resistência”, “30 Minutos” e “22 Horas”, na TV 247, e colunista do Brasil 247