“Como Bárbara de Alencar no início do século XIX, Luizianne Lins inscreve sua biografia em uma história maior”, aponta a jornalista e comunicadora Sara Goes
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Quando Bárbara de Alencar foi arrastada pelos calabouços do Império português, o sertão insurgente ganhou forma em sua carne submetida à violência. Mais de dois séculos depois, outra cearense retoma essa tradição de transformar o corpo em trincheira. Luizianne Lins, ex-prefeita de Fortaleza e deputada alencarina, embarcou na flotilha rumo a Gaza levando consigo a história de um povo habituado a resistir.
A viagem foi interrompida pela interceptação israelense. A parlamentar brasileira encontra-se detida e incomunicável, sem acesso a autoridades diplomáticas nem à imprensa. Sua prisão altera o alcance da travessia e converte o corpo em objeto imediato de disputa internacional. Ao deter uma deputada federal, Israel produz um episódio de crise diplomática que afeta diretamente o Brasil e amplia o impacto global da flotilha.
Antes da detenção, a presença de Luizianne já havia dado nova dimensão política ao ato. Sua biografia e legitimidade institucional funcionavam como instrumento de pressão sobre chancelerias e governos, elevando o custo de qualquer ação contra a flotilha. Agora, o corpo preso cumpre outro papel, ao forçar governos e organismos internacionais a se pronunciar sobre a situação.
O gesto de embarcar também rompeu o cerco informacional. Ao colocar-se diante das câmeras, a deputada inseriu a travessia no noticiário nacional e internacional, obrigando conglomerados de mídia a lidar com o bloqueio a Gaza. A imagem de uma parlamentar brasileira incomunicável em prisões israelenses torna-se, por si só, notícia de alto valor simbólico e comunicacional.
O episódio pode ainda gerar repercussões no Brasil. Há setores hostis que cogitam transformar a participação na flotilha em argumento para perseguição política, utilizando a narrativa de associação ao terrorismo como justificativa para uma eventual cassação de mandato. Essa possibilidade, embora não formalizada, já circula nos bastidores do Congresso e expõe os riscos de criminalização de gestos de solidariedade internacional.
Enquanto a detenção da deputada provoca comoção internacional e mobiliza a opinião pública, as ações do governo federal seguem em registro distinto. Não há busca por efeitos de espetáculo, mas um trabalho diplomático contínuo e discreto para assegurar a integridade dos brasileiros e abrir espaço para negociações. Essa sobriedade não rende manchetes diárias, mas sustenta o processo que pode garantir resultados concretos.
A flotilha condensa, assim, múltiplas camadas de insurgência. É solidariedade prática com o povo palestino, é cena de pressão diplomática, é estratégia de comunicação e agora é também a detenção de uma parlamentar brasileira em território estrangeiro. Como Bárbara de Alencar no início do século XIX, Luizianne inscreve sua biografia em uma história maior, em que o corpo político se torna veículo de enfrentamento e de visibilidade em meio ao conflito.
E, como sempre, haverá o retorno. Luizianne nunca se ausenta por completo, mesmo quando aprisionada ou silenciada. Ela sempre volta, e volta com generosidade, como sabe bem o PT do Ceará.
Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net