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“Memória e História: a infância nas terras de Iracema” – Amaudson Ximenes

Amaudson Ximewnes, presidente do Sindimusicos/CE e sociólogo. Foto: Arquvo Pessoal

“A infância de hoje, inegavelmente, sofre os impactos, sobretudo, da utilização massiva dos aparelhos eletrônicos”, aponta o sociólogo e músico Amaudson Ximenes

Confira:

O documentário Tarja Branca – A revolução que faltava, dirigido por Cacau Rhoden (2014), é uma ferramenta educacional importante dedicada ao resgate e à importância das atividades lúdicas nas diferentes fases da vida, e não somente na infância, quando somos “livres, leves e soltos”. O filme apresenta personagens cujo enfoque de seus depoimentos valoriza as brincadeiras de rua – o prazer de soltar pipas, de jogar pião e pular corda –, e coincide com as minhas práticas de criança.

No mundo atual – globalizado, informatizado, marcado pela presença das redes sociais na quase totalidade das existências –, o brincar parece ter sido esquecido em um “canto da sala” enquanto os olhos miram alguma tela. Sim. A infância de hoje, inegavelmente, sofre os impactos, sobretudo, da utilização massiva dos aparelhos eletrônicos – tablets, celulares, videogames (SOUZA, MORAES, 2025). Ou seja, o ato de frequentar praças, parques, festas e reuniões comunitárias tem se tornado cada vez mais raro.

A luta cotidiana pela sobrevivência, as metas inatingíveis impostas pelas empresas capitalistas e a competição desenfreada, também, são alguns dos fatores adversos às práticas lúdicas que atuam, inclusive, entre adultos, dificultando a retomada de práticas desenvolvidas nas ruas, nos logradouros públicos, em clubes e outros equipamentos esportivos e culturais (BOSI, 2009).

Lembro da minha infância em Ipu (CE) – cidade citada por José de Alencar no romance Iracema, nome da indígena que tomava banho na bica e namorava Peri na “Casa de Pedra” (ALENCAR, 1965) –, lugar das partidas de futebol nas calçadas da rua Padre Feitosa e na praça da Igreja Matriz, para onde o padre Morais e o sacristão Raimundo “Lapinha” iam para expulsar os brincantes, pois havia chegado a hora de celebrar a missa – e a presença barulhenta da molecada e a bola travessa e vadia que sempre acabava parando nas dependências do templo religioso assustavam os fiéis (MENDONÇA, 2022).

Era comum a nós, os meninos que nos reuníamos para limpar os quintais de nossas residências a fim de construir cabanas e campos de futebol, fazer versões em miniatura de cidades, por onde passeávamos com nossos carros de plástico, pelas vielas, ruas e avenidas imaginárias.

Em outros momentos, ocupávamos as subidas e descidas da pracinha da Estátua de Iracema com nossas bicicletas. Havia um fosso com água que separava a estátua do restante da praça, e nós circulávamos com as bicicletas no espaço entre o fosso e a praça, praticando uma espécie pouco perigosa de “globo da morte”.

Outro momento marcante era a comemoração dos nossos aniversários. Lembro das minhas primeiras festas. Duravam dias! Semanas! A começar pela confecção das lembranças, construídas carinhosamente pela minha mãe com a ajuda de minhas tias, vizinhas e da avó materna. E a produção dos bolos, salgados e outras guloseimas, então, obra do mesmo coletivo de mulheres. Lembro que era comum, ainda, ao final das celebrações, compartilhar pratinhos e vasilhas de quitutes e “cascos” de refrigerante Wolga que sobravam com os convidados.

Um ritual importante eram os presentes trocados. No meu caso, recordo que os pacotes ficavam expostos em cima da minha cama, coberta com uma colcha de chenille, geralmente, guardada para ocasiões especiais.

Os banhos na Bica do Ipu, uma cachoeira com cerca de 120 metros de altura, também eram parte do nosso cotidiano infantil. A idas ao local aconteciam aos domingos pela manhã. Costumávamos almoçar por lá. Tinha a Cachoeira do Gangão, cercada de mangueiras, que ficava no caminho da bica. Era comum a gente se lambuzar com as “manguitas” ali existentes. Ao descer um pouco mais, íamos brincar nos “canos” – a estação de tratamento de água da cidade –, que formavam biqueiras e tinham pequenas piabas. E, ao andar mais um pouco, podíamos nos banhar no “Cafute”, que era um riacho frequentado por mulheres, às vezes nuas ou seminuas, utilizado para banho e para lavar roupas.

Pois bem, ao assistir o documentário de Cacau Rhoden, acabei “voltando” aos meus tempos de criança. E, mais do que disparar diversos gatilhos emocionais, a experiência artística me trouxe muitas lembranças boas dos tempos em que eu residia na pequena e pacata cidade de Ipu, distante 280 km de Fortaleza. Concluindo o relato, a impressão que tive em relação à proposta do diretor, bem resumidamente, não diz respeito a conduzir os adultos de volta à infância, mas, sim, reativar o brincante que existe em cada um de nós, adultos – principalmente os “apartados” do lúdico.

Referências

ALENCAR, José de. Iracema: Lenda do Ceará (edição do centenário). Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MENDONÇA, Amaudson Ximenes Veras. O vôo do bem-te-vi. Fortaleza, 9 out. 2021. Facebook: @amaudson.ximenes. Disponível em: <www.facebook.com/photo/?fbid= 5684286584924653&set=a.450444081642289>. Acesso em: 2 dez. 2025.

MENDONÇA, Amaudson Ximenes Veras. Notas de um ipuense: Futebol de botão e o legado de Ferreirinha. Fortaleza, 12 set. 2022. Facebook: @amaudson.ximenes. Disponível em: <www.facebook.com/photo.php?fbid=4642218829131439&set=pb. 100000301041098.-2207520000&type=3>. Acesso em: 2 dez. 2025.

RHODEN, Cacau (Dir.). Tarja Branca: a revolução que faltava. Produção: Maria Farinha Filmes, 2014.

SOUZA, Byanka; MORAES, Glauco. O impacto do uso excessivo de telas no desenvolvimento infantil: uma abordagem comportamental. Revista Tópicos, v. 3, n. 19, 2025. ISSN: 2965-6672.

Amaudson Ximenes

Sociólogo e presidente do Sindimuce

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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