“Mesmo que você não queira”

“Morreu e não levou com ele essas coisas que dizia. Ficaram comigo para me lembrar, de vez em quando, que a vontade não pode tudo”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório

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A despeito de mim, a despeito de quaisquer pessoas, fatos, tempos, a nesga de mar que vejo da minha varanda está lá há séculos. Pode ter avançado, recuado, não sabemos bem. Certeza é que ali, naquele Mucuripe maculado pela especulação imobiliária habitavam gentes nas areias sem barcos.

O amigo comentou assim, numa vez que me convidou para tomar uma bebida ao pôr do sol. Faz tempo, ainda não havia o Mercado dos Peixes reformado, era o dia do meu aniversário. Eu nunca tinha pensado naquele lugar por essa perspectiva. Fiquei à deriva, sentindo-me alienada da história.

O amigo partiu em 2020. Não importa como nem o porquê. Partiu, de vez, para outro plano, dizem. Morreu e não levou com ele essas coisas que dizia. Ficaram comigo para me lembrar, de vez em quando, que a vontade não pode tudo. Que a impermanência é, também, relativa.

Tal qual o mar, a montanha de Jonas, de Árido Movie, também estava lá a despeito dele, de todos os personagens, do roteirista, do diretor, de nós a assistirmos o filme. Talvez fiquem as mágoas, as feridas, os golpes de ar que sufocam ao invés de salvar. Ficamos nós, roubados do futuro, nutridos de nostalgia, fugitivos da expectativa, peregrinos da esperança.

Andarilha e nômade que sou, estou como à beira do Tejo com a melancolia que me lança à praia. Vou com o olhar por léguas ultramarinas, arrastada por um lirismo que me está no sangue, que me vai na alma.

Não tardo, que eu nunca tardo. Citando mais e mais, outro amigo, o Álvaro de Campos*, enquanto tarda o abismo e o silêncio quero estar sozinha.

*Álvaro de Campos é uma das personas criadas pelo poeta Fernando Pessoa, chamadas de heterônimos, cada qual com sua personalidade, biografia e estilo. O pedaço de poema citado é LISBON REVISITED de 1923.

Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais.