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“Meu encontro com o diabo”

Barros Alves é jornalista e poeta

“Olha, meu amigo, disse-me com muita sinceridade , tu não ficarás aqui por muito tempo, porque terás de retornar de onde veio para cumprir importante missão”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves.

Confira:

Morri. Desci aos infernos sem esperança de ressuscitar. Então, de logo, me preparei para enfrentar o Capetão tête-a-tête. De fato, o diabo não é tão feio como parece e pessoalmente tem uma conversa agradável. Recebeu-me à porta com modos de pessoa bem educada. Trajava a rigor, uma longa capa preta por cima da vestimenta normal, que descia até os pés, complementado com um capuz, um camelauco à moda dos monges orientais, que lhe cobria a cabeça, impedindo-me de ver com mais exatidão o formato de seu rosto e a cor de seus cabelos. Pareceu-me um engravatado como qualquer outro. Só não tinha colarinho branco. A roupa era toda negra assemelhando-se a um urubu. Outros diriam que a semelhança com corvos ficaria mais apropriada. O fato é que me convidou a entrar em amplo recinto, iluminado, tapete aveludado, poltronas macias. Nada daquilo que haviam me contado do tenebroso que seria o inferno. Era tudo fake news desses santarrões de sacristia ou desses crentes que dizem falar sempre com o chefão Todopoderoso que comanda as partes superiores do Cosmo. Com ar de bondade, voz mansa e gestos delicados, o Coisa Ruim, demonstrando saber tudo sobre mim, iniciou a conversa. Disse-me que eu era bem-vindo e que seria um prazer ver-me trabalhando em sua seara. E foi logo explicando como seria a labuta para que eu me desse bem na nova moradia.

Olha, meu amigo, – disse-me com muita sinceridade -, tu não ficarás aqui por muito tempo, porque terás de retornar de onde veio para cumprir importante missão. Estamos precisando de trabalhadores na seara, uma vez que o Outro, que se diz Todopoderoso, tem feito um escarcéu nas minhas fileiras. Para você se dar bem fará um breve estágio que não tem segredo nem dificuldade. Basta fazer ao contrário do que o Outro manda ensinar aos sujeitos vivos. Por exemplo, o Outro ensinou sempre para que AMÁSSEMOS uns aos outros; aqui eu determino que AMASSEMOS uns aos outros. O Outro diz para não matar, eu digo que o errado é não matar muita gente. Matar um é assassinato; matar muitos é apenas uma guerra assistida pelas leis do Estado, que eu dou um jeito de serem aprovadas. O Outro ingenuamente diz para que sejam a luz do mundo; eu digo que devemos tocar fogo no mundo, iluminando-o de fato. Aqui ele abriu um sorriso que mais pareceu um esgar. E aduziu: os seus colegas que estiveram aqui antes reenviei para lá e ordenei que se congregassem num tal de MST – Movimento para Submeter os Trouxas. Eles estão tocando fogo em tudo e os trouxas, apavorados, não emitem qualquer reação. Até porque eu já tenho gente igual a ti em locais estratégicos para não permitir um possível contra-ataque. Aliás, já determinei a requisição das terras queimadas para estabelecer ali uma sucursal do inferno.

E o gentil e convincente Capeta-mor continua seu discurso, que já está até me agradando. O Outro, insistiu ele, diz para serem honestos, dizerem a verdade, não dar falso testemunho. Besteira muita! Quanto mais desonesto e mais mentiroso, mais sucesso terás em teu mister de alcançar as metas por mim estabelecidas. Basta ver para o sucesso e a respeitabilidade que tenho por lá. As pessoas, mesmo que não me amem, me temem. Mas, tem alguns que me adoram. São defensores intransigentes de minhas teses, quase todas arrimadas na farsa, no logro, na mentira. Falso testemunho? Ora é só o que aceito. O resto é conversa de comadre em pátio de igreja. Aliás, não deixe de usar esses babacas religiosos para minar o terreno deles mesmos. Eles são frágeis de formação e alguns fracos de caráter. Os enviados do Outro não estão trabalhando direito e é aí onde nós temos que usar os ensinamentos do nosso colega Antônio Gramsci, que já passou por aqui, fez um longo estágio, saiu doutorado e está mandando ver lá novamente. Tem uma infinidade de seguidores, os quais, a rigor, são meus seguidores.

Depois de longa peroração, retórica impecável, o “monge” das profundezas não tão profundas, encerrou a conversa reafirmando que eu deveria prestar mais atenção em tudo o que os seguidores do Outro fazem para agir e ensinar ao contrário. “Porém, – alertou-me -, não te esqueças do principal. Quando, porventura, fores questionado sobre tuas atitudes fora dos modos aceitos pelos do Outro, trata de acusá-los veementemente, com artimanhas e discursos ardilosos, de modo que eles sejam incriminados sem dó nem comiseração. Se assim agires serás cada vez mais acreditado e aplaudido. Quer dizer, sejas sempre desonesto, mas reafirme de peito erguido sua honestidade.” Terminada a conversação, o elegante Satan levantou-se lentamente, retirou a capa e também o capuz. Tomei um susto. Não tinha rabo, nem chifre. Era apenas careca. Acordei.

Barros Alves é jornalista e poeta

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