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“Milagres”

Alexandre Aragão de Albuquerque é escritor e Mestre em Ciência Política

“O oxigênio respirado pelos humanos da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ser o mesmo oxigênio inalado pelas pessoas habitantes do Vale da Ribeira”, aponta o cientista político Alexandre Aragão de Albuquerque

Confira:

Recolhendo ainda algumas impressões do período natalino, no qual há evidente disposição de muitas pessoas em reafirmar valores atinentes a uma sociabilidade fundada na empatia recíproca e na cooperação, diferentemente daquela desenvolvida e incentivada pela ideologia neoliberal da competição predatória, enraizada na instrumentalização do outro, tornado coisa, tendo em vista a obtenção do gozo individualista, sem medidas nem limites, gerando como produto do sistema material capitalista a desigualdade, a concentração de riqueza, a miséria humana.

Apesar de um bem natural – o oxigênio – respirado pelos humanos da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ser o mesmo oxigênio inalado pelas pessoas habitantes do Vale da Ribeira, a realidade econômico-social é bem desproporcional. A Faria Lima é o símbolo da acumulação e concentração da riqueza produzida pelo capitalismo financeiro, enquanto o Vale da Ribeira é o local geográfico habitado por 400 mil humanos precarizados pela extrema pobreza de suas existências, formando um grande bolsão de miséria, consequência real de tal sistema econômico.

Outra situação, não menos alarmante, segundo o levantamento do Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRUA), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a cidade São Paulo atingiu em junho de 2023 o total de 80.369 pessoas habitando e vivendo nas ruas da capital paulista. A título analítico-comparativo, dos 184 municípios do Ceará, 168 cidades (91,30%) têm uma população inferior a 80 mil habitantes.

Todavia, ocorre que o período natalino se reveste de operações não apenas de multiplicação ou adição, tão comum aos meios financistas focados em seus egocentrismos rentistas, mas também de divisão e subtração, ou seja, de comunhão e de partilha, à medida que, pelo menos nesta época do ano, muitos corações e mentes conseguem enxergar situações reais de sofrimento humano à sua volta.

Além disso, o período natalino passa a ser um ponto de chegada de muitos coletivos, no qual procuram recolher os resultados de suas ações social e política organizadas, como também um ponto de partida para outras metas a serem perseguidas por meio de novos enfrentamentos e desafios que se lhes impõem.

Uma das referências simbólicas para estes coletivos é a Alegoria do Milagre da Multiplicação do Pães e Peixes contida nos evangelhos cristãos (Mt 14:13-21, Mc 6:30-44, Lc 9:10-17, Jo 6:1-15) relativos à práxis desenvolvida por Jesus de Nazaré. A centralidade deste episódio reside em alimentar a todos sem exceção, ninguém deve passar fome ou privação.

E tal possibilidade se dá por meio de três operações: a organização do povo em grupos; a multiplicação dos bens possuídos pela coletividade; a divisão da riqueza produzida socialmente, com o devido recolhimento do excedente, para que não haja desperdício, visando a uma cultura do cuidado e do respeito pelos bens, produtos do meio ambiente e do trabalho humano, capazes de satisfazer a todos.

É nessa perspectiva de ação esperançosa (esperança é estar de pé em movimento) que Jesus de Nazaré provoca os seus seguidores a agirem no sentido de superar a violência sistêmica estrutural da opressão imperial romana a que estão submetidos, criando a partir de suas ações coletivas concretas e reais uma nova sociabilidade. É lutar, saber como lutar.

A cientista política Hannah Arendt (1906-1975), em seu livro A Dignidade da Política (Relume-Dumará, 1993), afirma que “o milagre da liberdade está inserido no poder de iniciar que, por sua vez, está inserido no fato (faktum) de que todo humano, ao nascer, ao aparecer num mundo que estava aí antes dele, e continuará a ser depois dele, é ele mesmo um novo início. O termo grego archein significa iniciar, comandar, isto é, ser livre. O termo latino agere significa colocar em movimento, ou seja, desencadear um processo. Assim, se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter expectativa de milagres. Não porque acreditemos (religiosamente) em milagres, mas porque os humanos, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não”.

Mas Arendt adverte: somente quando palavra e ação não se divorciam, andam juntas; quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais; quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar ou destruir, mas para criar relações e novas realidades, tem-se uma verdadeira realização política, na liberdade.

Alexandre Aragão de Albuquerque é Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)

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