Com o título “Minha família borda a vida com a linha teimosa do existir”, eis crônica de Suzete Nocrato, jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. “Ultimamente, tenho refletido sobre esse tempo. Não no que já se foi, mas no que me alcança. Fico pensando o que é envelhecer. Não saberia definir, mas talvez seja um ciclo em que a vida se pinta com cores novas, ou se aquieta em uma paz serena que se instala no coração”, expõe a articulista.
Confira:
A família de minha mãe parece ter um pacto secreto com a vida. Sorve o viver até a última gota, entre prazeres miúdos, silêncios compridos, queixumes que se confundem com vivências, e uma vitalidade que desafia o tempo. A hora sempre chega tarde e teima em não partir. É uma conta que não se conta.
Boa parte de seus membros cruza nove décadas como quem atravessa o rio Jaguaribe, sempre firme, presente e sem pressa. Alguns se detêm um pouco antes da margem do exuberante recurso hídrico que banha Saboeiro; outros vão além, tocando o século, como quem prolonga o dia só para ver mais um pôr do sol. O melhor é que acolhem a passagem do tempo, sem medo, apesar das fronteiras que o corpo e a mente impõem.
Ultimamente, tenho refletido sobre esse tempo. Não no que já se foi, mas no que me alcança. Fico pensando o que é envelhecer. Não saberia definir, mas talvez seja um ciclo em que a vida se pinta com cores novas, ou se aquieta em uma paz serena que se instala no coração.
Sentirão assim os velhos do meu ajuntamento lindo e contraditório? Não sei. Mas, prefiro carregar a certeza – ainda que a vida possa me desmentir adiante — de que a velhice desaprende as urgências e silencia as inquietudes da juventude.
Há pouco mais de um mês, um irmão de minha mãe celebrou 94 anos com o vigor de quem ainda planeja passeios e aceita compromissos e desafios. Na semana passada, uma prima dela soprou 97 velas, firme à frente de sua casa, comandando tudo com energia e bom ânimo, a todos contagiando. Em breve, menos de dois meses, minha querida tia Zuleide completará 90 anos, adicionando mais um capítulo a essa história de longevidade.
No mês passado, o irmão de meu pai — que por laços cruzados, também é primo em terceiro grau de minha mãe — festejou 95 anos com leveza e serenidade, reafirmando que essa teimosia boa de viver parece correr no sangue. Ontem, me peguei observando minha mãe. O tempo diz que ela tem 87 anos — mas o coração dela, não sei medir. Vive entre contrastes: a mente vivaz, ávida por encontros, festas e viagens, e um corpo que já conhece o peso das horas. Ainda assim, ela se move com alegria, com beleza. Faz pilates, desfruta de uma cervejinha gelada, acompanha com brilho nos olhos as conquistas dos netos. Festeja os bisnetos.
Vejo-a buscando, dentro de si, o ontem, e bordando no hoje retalhos de memória. Parece reviver a jovem enamorada de meu pai — por 50 anos, ela foi uma espécie de anjo da guarda dele —, a mãe de passos atentos, a mulher de fé, a filha amorosa, a irmã de presença inteira. Com lucidez, enfrenta a asma, o enfisema pulmonar e a degeneração macular com a mesma coragem e resiliência despertadas na juventude. Não se deixa vencer. Vence. Busca a felicidade que um dia a encheu e que, de alguma forma, ainda vive nela.
E assim, um a um, elas e eles vão escrevendo páginas da vida como quem folheia um álbum de fotografias antigo. Não para se prenderem ao passado, mas para deixar espaço — generoso e aberto — às vivências que ainda virão.
*Suzete Nocrato
Jornalista e Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará.