“Estaria o trumpismo ensaiando uma nova forma de intimidação sobre o Brasil às vésperas das eleições de 2026?”, aponta o jornalista Gustavo Tapioca. Confira:
Em julho de 2025, quando o governo brasileiro enviou a Washington uma comitiva para discutir com assessores de Donald Trump o tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros, o deputado Eduardo Bolsonaro escolheu o sarcasmo bélico como retórica:
“Está muito mais fácil os porta-aviões chegarem ao Lago Paranoá — e, se Deus quiser, chegarão em breve — do que vocês serem recebidos [pelas autoridades dos EUA].”
A frase, dita com seu tom habitual de provocação, passou despercebida em parte da mídia, mas, no contexto, carregava o veneno da ameaça simbólica: um filho do ex-presidente condenado evocando a presença militar norte-americana no coração de Brasília. Era como se o trumpismo tivesse encontrado, no Brasil, o espelho tropical de sua própria retórica imperial.
O eco no Senado e o fantasma da intervenção
Três meses depois, em 23 de outubro de 2025, o senador Flávio Bolsonaro foi mais explícito. Respondendo, em inglês, ao Secretário da Guerra de Trump, Pete Hegseth, escreveu nas redes sociais:
“Que inveja. Você não gostaria de passar alguns meses aqui nos ajudando a combater essas organizações terroristas? Há barcos como estes no Rio de Janeiro, na Baía de Guanabara, de traficantes de drogas.”
O comentário se referia a uma mensagem de Hegseth anunciando:
“Na manhã de hoje, sob as ordens do presidente Trump, determinei um ataque letal e cinético contra uma embarcação de narcotráfico associada a organizações terroristas designadas na área de responsabilidade do Comando Sul (SOUTHCOM) dos Estados Unidos.”
O ataque havia ocorrido no Caribe, mas a linguagem e o alvo — “letal”, “cinético”, “terrorista” — lembravam a retórica que, ao longo do século XX, antecedeu intervenções militares norte-americanas na América Latina. Flávio Bolsonaro, ao celebrar publicamente essa ação e sugerir que algo semelhante ocorresse na Baía de Guanabara, reproduziu a velha fórmula da submissão travestida de parceria: convidar o império a “salvar” o país de si mesmo.
O Gerald R. Ford e a geopolítica da intimidação
Um dia depois, em 24 de outubro, o Departamento de Defesa dos EUA confirmou que o porta-aviões Gerald R. Ford — o maior do mundo, com cem mil toneladas e cinco mil tripulantes — havia sido deslocado para a área do United States Southern Command (SOUTHCOM), cuja jurisdição cobre Caribe, América Central e América do Sul.
O comunicado oficial dizia que a missão visava “reforçar a capacidade dos EUA de detectar, acompanhar e interromper atores e atividades ilícitas” na região. Em termos diplomáticos, uma justificativa rotineira; em termos simbólicos, uma mensagem de potência.
O porta-aviões norte-americano, a máxima expressão da guerra projetada no século XXI, navegava para o hemisfério Sul exatamente quando o presidente Lula consolidava ampla vantagem nas pesquisas para as eleições de 2026 — e quando o trumpismo parecia disposto a reconquistar, pela pressão e pela ameaça, o que perdera no campo político.
Da Brother Sam ao SOUTHCOM: ecos de 1964
A presença de um porta-aviões norte-americano nas imediações do Brasil desperta lembranças antigas. Em 1964, durante a crise que antecedeu o golpe militar, os EUA prepararam a Operação Brother Sam, mobilizando a 7ª Frota no Atlântico Sul para apoiar as tropas golpistas caso o governo João Goulart resistisse.
Meio século depois, o SOUTHCOM — herdeiro direto daquela política de vigilância hemisférica — mantém sua sede em Miami e atua como centro de coordenação estratégica dos EUA para a América Latina. Sob o discurso da “cooperação antiterrorista”, o comando abrange programas de inteligência, vigilância marítima e treinamento de forças locais.
O novo deslocamento do Gerald Ford é apresentado como operação “rotineira”. Mas o momento — a reaproximação entre Trump e os Bolsonaro, as declarações provocativas e a campanha presidencial brasileira em andamento — dá ao movimento o cheiro inconfundível da pressão geopolítica.
Trumpismo transnacional: a guerra como espetáculo
A política externa de Trump é uma mistura de espetáculo e intimidação. Desde seu retorno ao poder, o republicano investe em um rearmamento ideológico: reforçar a presença militar no hemisfério e apoiar abertamente os líderes de extrema-direita que orbitam sua influência.
O Brasil, nesse tabuleiro, é peça-chave. O país de Lula simboliza o retorno da soberania latino-americana, da cooperação Sul-Sul e da multipolaridade dos BRICS — tudo o que o trumpismo detesta.
Ao reconhecer “narcotráfico” e “terrorismo” como justificativas para ações cinéticas no Caribe, a Casa Branca cria brechas para uma doutrina de intervenção moralizada, em que a “guerra às drogas” funciona como fachada para o controle político e econômico do continente. É a versão 2.0 da velha Doutrina Monroe: menos marines, mais drones e porta-aviões digitais de comunicação e desinformação.
Os Bolsonaro e a esperança na tutela imperial
As declarações de Eduardo e Flávio Bolsonaro não são isoladas. Representam a continuidade de um projeto que sobrevive à prisão de Jair Bolsonaro — condenado a 27 anos por crimes contra a democracia — e à derrota eleitoral da direita em 2022.
O trumpismo, reeleito em 2024, fornece o modelo e o abrigo ideológico: religião como bandeira, guerra cultural como método e ameaça militar como argumento. A relação é simbiótica: Trump usa o Brasil como vitrine de sua cruzada hemisférica; os Bolsonaro usam Trump como fiador de sua sobrevivência política.
Ao celebrar ataques militares e invocar a imagem de porta-aviões nas águas de Brasília, eles tentam reavivar o mito do salvador estrangeiro, o mesmo que, em 1964, serviu para justificar tanques nas ruas.
Um recado para 2026
A pergunta que paira sobre Brasília é simples e grave: o que quer o trumpismo com esse tipo de ameaça?
Seria apenas demonstração de força, ou um ensaio de intimidação para o caso de uma nova vitória de Lula em 2026?
Os sinais convergem. O rearmamento retórico dos Bolsonaro, o deslocamento do Gerald Ford e a retórica do “combate ao terrorismo” formam o triângulo de um discurso que prepara o terreno para contestar a soberania brasileira sob o pretexto da segurança hemisférica.
O Brasil de 2025 vive, mais uma vez, sob a sombra de um porta-aviões — agora não apenas metáfora, mas presença física. E a história, que nunca esquece, recorda: porta-aviões norte-americanos nunca navegam por acaso.
Gustavo Tapioca é jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de “Meninos do Rio Vermelho”, publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado