A arte de governar requer não apenas conquistar o poder, mas mantê-lo. E manter-se no trono exige mais que ruído e estardalhaço inútil, aponta o jornalista Luís Pellegrini
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“Donald caríssimo, sou Nicolau Maquiavel, de Florença. Vivi entre os anos de 1469 e 1527, em pleno Renascimento italiano, quase todos eles a serviço do príncipe Lorenzo de Medici. Foi para ele que escrevi minha obra mais conhecida, O Príncipe, cujo objetivo principal é oferecer um guia prático para governantes sobre como conquistar, manter e consolidar o poder político. Nela desenvolvo a ideia de que, para assegurar a estabilidade e a glória do Estado, o príncipe deve estar disposto a agir com astúcia e, quando necessário, com firmeza, separando a moral tradicional da política. Enfatizo que as ações do governante devem ser orientadas pela eficácia na manutenção do poder, mesmo que isso implique o uso de meios considerados imorais.
Hoje estou numa área do paraíso reservada aos bons filósofos, cientistas, artistas e mestres espirituais da humanidade. E é desde observatório privilegiado que, com um misto de gáudio e preocupação, observo as ações que você vem desenvolvendo no comando da maior potência do planeta neste momento. Com gáudio porque verifico que, mesmo sem ter lido minha obra, você tem sido capaz – talvez por puro instinto – de por em prática uma série de recomendações e conselhos meus. Com preocupação porque vejo que você não percebeu que meus conselhos são, todos eles, facas de dois gumes: um é o gume que corta e leva às vitórias e às conquistas. O outro é o gume que serve de alerta e advertência, pois representa uma das mais inelutáveis e inevitáveis leis de todo o universo: a Lei do Retorno. Segundo essa lei, nossas ações, pensamentos e intenções geram consequências que retornam para nós. Esse princípio está presente em quase todas as tradições filosóficas e religiosas, enfatizando a responsabilidade pessoal e a ética nas escolhas diárias. Para o seu próprio bem, digo que todo governante precisa entender a Lei do Retorno. A título de exemplo, cito o caso do religioso dominicano Savonarola, que viveu na minha época e me detestava: ele utilizava sermões apocalípticos para incitar o medo público e, dessa forma, coagir as pessoas a fazer o que ele quisesse. Não levou em conta a Lei do Retorno que, no entanto, como todo religioso cristão, conhecia muito bem. Resultado: foi preso, condenado e executado em 1498.
No momento, Donald, aqui na Central de Ciências Políticas do Paraíso, onde atuo momento, cogita-se muito a respeito de quais são os seus verdadeiros objetivos ao criar tanta celeuma, confusão e descaminho no mundo. Muitos externaram suas hipóteses explicativas, mas creio que a que mais me interessou foi a visão de Cassandra, antiga princesa troiana. Como você provavelmente não tem noção de quem foi ela, explico que Cassandra tinha o dom da profecia e da leitura da alma dos homens, mas, por uma maldição de Apolo, embora suas predições fossem exatas, ninguém acreditava nelas. Pois bem, Donald: Cassandra perscrutou sua alma e veio a nós para contar o que descobriu. Revelou que todo esse circo que você está armando no mundo, guerra das taxações, tomada da Groenlândia, do Canal do Panamá, e outras sandices não passam de cortinas de fumaça para encobrir os seus verdadeiros desejos: as terras raras da Ucrânia e Gaza, aquela belíssima faixa litorânea. Para isso você conta com dois súcubos de primeira ordem: respectivamente Putin e Netanyhau. Ambos estão fazendo tabula rasa naquelas terras, acabando com as populações locais, limpando o terreno, para que, no momento oportuno chegue você carregando suas ambições desmedidas. Mas Cassandra diz que tem muito mais: ela está garimpando continuamente na sua cabeça, e assim que descobrir quais outras intenções de conquista e poder ela abriga, ela vai nos revelar.
Donald, observo ainda que você compreende bem uma lição central que deixei em meus escritos: o poder, para ser mantido, exige aparência de virtude mais do que a virtude em si. O povo não precisa amar seu líder — basta que o tema e o admire. Nesse sentido, sua persona pública, ainda que controversa, serve para consolidar sua imagem como alguém forte e decidido. Isso, por si só, é maquiavélico no melhor dos sentidos.
Contudo, tenho o dever de lhe alertar: a instabilidade constante, o desprezo pelas instituições e a criação de muitos inimigos ao mesmo tempo pode fazer com que mesmo os mais hábeis príncipes percam o controle. Um líder sábio deve saber quando dividir para governar, mas também quando unir para não ser destruído.
A arte de governar requer não apenas conquistar o poder, mas mantê-lo. E manter-se no trono exige mais que ruído e estardalhaço inútil – exige cálculo, contenção e aparência de virtude. O povo perdoa muitos pecados ao governante, mas não perdoa a perda de prestígio. Por isso, preste atenção às manifestações de desagrado à sua pessoa que acontecem não apenas em seu próprio país, mas em todo o mundo. O temor é eficaz apenas quando não se converte em desprezo. Um príncipe pode ser temido, sim, mas nunca ridicularizado. Quando os bufões se tornam reis, os súditos riem — até que parem de rir, e peguem as armas.”
Luís Pellegrini é jornalista e editor da revista Oásis