Com o título “Notas sobre a Ordem dos Músicos do Brasil – Secção Ceará: a casa caiu!”, eis artigo de Amaudson Ximenes, sociólogo, músico e pesquisador. “(…) a demolição da sede do Estado do Ceará é somente uma consequência dos inúmeros desmandos, da desorganização, da incompetência da instituição em estabelecer um diálogo franco e transparente com a categoria e a sociedade brasileira ao longo dos seus 65 anos de existência”, expõe o articulista.
Confira:
Recebi um vídeo, através do “zap”, cujo conteúdo diz respeito ao desaparecimento do prédio da Ordem dos Músicos do Brasil – Seção Ceará, então sediado na Avenida José Bastos, nº 2.880. O conteúdo traz um personagem que lamenta o desaparecimento, dizendo que vai “investigar”, depois, em tom “ameaçador”, promete “punição” aos malfeitores. Mas, acredito que se soubesse um pouco da trajetória da instituição, a sua reação seria completamente diferente.
Como morador do bairro do Rodolfo Teófilo e ciclista que trafega pela Avenida José Bastos quase todos os dias, devo dizer que o prédio estava fechado há, pelo menos, quatro anos. Ou seja, desde o período pandêmico que o funcionamento das atividades da instituição naquela localidade, não acontecia. O local permanecia fechado, em completo abandono.
Como pesquisador do campo musical, devo dizer que a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) “respira com ajuda de aparelhos”. Faz tempo que se desviou da sua finalidade: a regulamentação e fiscalização da profissão, abrangendo a seleção, a disciplina, a defesa de direitos e deveres da categoria.
Nascida no governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek de Oliveira, através da lei 3.857/60 sancionada em 22 de dezembro de 1960, capitaneada por personagens ilustres da música brasileira como Heitor Villa-Lobos, Eleazar de Carvalho, Radamés Gnatalli, Francisco Mignone, tendo José de Lima Siqueira, maestro e advogado, como o seu primeiro Presidente. A criação da Autarquia Federal trazia esperança de dias melhores para os músicos brasileiros. Entretanto, após passar por um processo de intervenção durante o Golpe Civil Militar em abril de 1964, desviou a sua finalidade, passando a “vigiar e punir os inimigos da Segurança Nacional”.
A partir de então, os Conselhos: Federal e os Regionais nomearam interventores, geralmente ligados a bandas militares e/ou ao regime de exceção. Foram anos de perseguição à categoria, aos chamados “músicos piratas”, “aos comunistas e subversivos”. José de Lima Siqueira, acusado de pertencer ao Partido Comunista, foi afastado e preso. O mesmo acontecendo com José Jatahy no estado do Ceará, e Constantino Milano Neto, no estado de São Paulo.
Nesse ínterim, carteiras profissionais eram vendidas no “atacado e no varejo”. Os testes de aptidão eram fraudados, não mediam a capacidade técnica e profissional dos músicos. O objetivo maior era arrecadar. Além disso, os valores que eram auferidos com as notas contratuais, cujas vias eram destinadas ao Ministério do Trabalho, aos Sindicatos da categoria, aos contratantes e contratados não chegavam aos seus destinos. A apatia, a divisão, a falta de unidade da classe contribuiu para que a situação só se agravasse.
O Conselho Federal foi ocupado por Wilson Sandoli, nomeado interventor pelo então Delegado da Polícia Federal, Romeu Tuma, no dia 8 de abril de 1964; Sandoli só deixaria o cargo após a sua morte nos anos de 2010. No ano de 1975, através de uma resolução do então interventor: criava-se a figura do “músico prático” e do “músico profissional”. O primeiro só tinha direito de tocar se pagasse a anuidade. O segundo, com diploma de curso superior e/ou que lia partitura, tinha o privilégio e distinção, o direito de votar e ser votado.
No final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, a constitucionalidade da Lei 3.857/60 passou a ser questionada judicialmente. Os músicos trocaram os palcos pelos tribunais. Enquanto isso, os conselhos regionais passavam por processos de intervenção e as eleições aconteciam de forma indireta. Noventa e nove por cento dos músicos vinculados à OMB não tinham o direito a voto por serem “músicos práticos”. Além disso, a renovação das chapas acontecia de forma fragmentada. Só renovava 1/3 dos integrantes, beneficiando os “gestores de plantão”. Era comum os dirigentes passarem mais de dez, quinze ou vinte anos à frente dos conselhos regionais, enquanto Wilson Sandoli permanecia intacto à frente do Conselho Federal, do conselho paulista e do sindicato da categoria naquele estado.
Em 2009, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADF) de nº 183/09, ajuizada pela Procuradoria-Geral da União, questionava a filiação obrigatória à instituição, o que feria o princípio constitucional da liberdade de expressão e do livre exercício profissional. O processo perdurou por quase duas décadas até que, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) acolheu a tese defendida pela Procuradoria-Geral da União. Desde então, nenhum músico brasileiro é mais obrigado à filiação a OMB para o exercício profissional.
Desmobilizada, distante da classe musical, desmoralizada perante a sociedade brasileira, parece não ter feito nenhum esforço para recuperar a sua credibilidade. Muito pelo contrário. Permaneceu realizando eleições indiretas e questionáveis. Envolta em dívidas e processos judiciais Brasil a fora, padece, tem bens móveis e móveis penhorados e leiloados, ou demolidos, como ocorreu com o prédio do Conselho Estadual, sediado na Avenida José Bastos.
Diante do exposto, a demolição da sede do Estado do Ceará é somente uma consequência dos inúmeros desmandos, da desorganização, da incompetência da instituição em estabelecer um diálogo franco e transparente com a categoria e a sociedade brasileira ao longo dos seus 65 anos de existência. À categoria musical resta buscar novos mecanismos de valorização, de proteção social e trabalhista. As entidades associativas, federativas e sindicatos se tornaram uma realidade e vêm crescendo e florescendo no ecossistema da música brasileira lançando luzes à escuridão deixada pela OMB.
*Amaudson Ximenes
Sociólogo, músico e pesquisador.