“Ao contrário de Zito, não considero para sempre demais. É tão plausível quanto daqui a pouco”, aponta a jornalista, publicitária e escritora Tuty Osório
Confira:
Sem tempo nem disposição para sair, entra pelo whatsapp uma ligação de um dos do grupo da Casa de Enock*. É o Zito, camarada Zito como diz a amiga Leda. Parece aflito na ligação e fico preocupada. O que houve é a pergunta clássica. É meio da tarde e mesmo pra uma turma de atletas do esporte é cedo para uma carraspana já iniciada.
-É o Afonso, diz Zito, em tom de angústia mais que radical.
-O Afonso?
-Sim. Saiu daqui há pouco. Pálido que nem papel. Papel branco. Evidente.
-Como assim? Não deu sinal que está na cidade. Nunca fez isso antes. Pálido como? Tomou demais? Outra coisa? O que foi?
-Nada. Nem tomou, nem fumou, nem cheirou, nada. Já chegou assim. Falou umas coisas com nexo e sumiu. Deixou umas rosas brancas pra Conchita e um caderninho de papel reciclado pra você.
-Caderninho com anotações?
-Não. Sem nada escrito.
-Você abriu? Jura?
-Xi! Estava grilado com o jeito dele. Abri procurando uma pista.
-Uma pista? Você acha que ele sumiu para sempre?
-Para sempre é um pouco demais, né? Mas por um bom tempo é arriscado. Estava com jeito de saturado, de bodão…
-Bodão? O que é isso?
-Rapaz, é um bode grande, né?
-Zito é muito cedo pra você falar desse jeito! Cedo da tarde, fala sério!
-Juro que estou sóbrio. Tomei umas cervejas porque com este calor e essa do Afonso…No seco fica difícil, né?
-Você está me deixando confusa. E irritada.
-Fica não! Não é prático ficar confusa e irritada. Você sabe onde ele costuma se hospedar. Liga lá e vê se descobre alguma coisa. Celular não adianta. Desligado como era previsível.
-Sei quais são os hotéis. Um é aqui perto de casa. O outro na Praia do Futuro. Vou ligar.
-Diz alguma coisa, tá?
Telefono e não elucido nada. Há reservas nos dois hotéis. Entradas registradas sem saída. Nenhuma mensagem lá. Nem no meu celular. Nem na minha portaria. Só o caderninho reciclado, sem palavras, nas mãos de um Zito que foi de atordoado a melancólico quando lhe dei a notícia do insucesso da minha investigação.
Não vou à Casa de Enock. Vou ao teatro ver um musical com minha mãe e na volta, quando o silêncio toma conta da noite, penso no suposto sumiço de Afonso, com angústia e solidão. O amigo que não se adia. Por quanto tempo ficará suspensa essa identidade? Ao contrário de Zito, não considero para sempre demais. É tão plausível quanto daqui a pouco.
Sem a intenção que seja sobre mim, questiono-me em que momento o perdi, antes deste em que me conscientizo de sua partida. Esquecida que , de certa forma, é tudo um pouco sobre nós, choro por uma despedida sem abraços, mãos apertadas, vultos que somem na esquina, no horizonte. Como o viajante do poema, sou eu mesma que me despeço no vazio que me toma.
*Lembrando que a Casa de Enock é o Bar em casa que a amiga Consuelo criou e concretizou, para juntar as amizades com segurança e certeza.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS. Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais