Com o título “O Ceará na Encruzilhada da Transição Energética”, eis artigo de Alex Araújo, economista e ex-secretário do Desenvolvimento Regional do Estado. “O Ceará tem todas as condições para ser protagonista da transição energética global: sol, vento, porto estratégico, conectividade digital e capital humano. Mas esses ativos só se transformarão em desenvolvimento se o gargalo da transmissão for superado”, expõe o articulista.
Confira:
Nos últimos anos, o Ceará se consolidou como um dos principais polos de energias renováveis do Brasil. A abundância de vento e sol, combinada com políticas públicas de incentivo, atraiu investimentos bilionários e colocou o Estado no mapa mundial da transição energética. No entanto, uma barreira estrutural ameaça esse avanço: a limitação da rede nacional de transmissão.
Em 2025, quase um quinto da geração eólica e solar do país foi desperdiçado devido aos chamados curtailments – cortes de energia ordenados pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para evitar sobrecarga da rede. O prejuízo acumulado desde 2022 ultrapassa R$ 3,2 bilhões, atingindo diretamente a confiança dos investidores e o equilíbrio financeiro de projetos de longo prazo.
Esse gargalo não é apenas um problema operacional: é uma ameaça concreta aos planos estratégicos do Ceará, que aposta no tripé energias renováveis – datacenters – hidrogênio verde (H2V) para reposicionar sua economia em direção a setores de alto valor agregado e baixa emissão de carbono.
O sistema elétrico brasileiro foi desenhado para uma lógica distinta da atual. Durante décadas, a matriz foi dominada por grandes hidrelétricas, localizadas principalmente na região Sudeste/Centro-Oeste, e a rede de transmissão foi estruturada para levar essa energia até os grandes centros de consumo.
A explosão da geração renovável no Nordeste, particularmente no Ceará e no Rio Grande do Norte, mudou essa equação. O vento constante e a alta incidência solar transformaram a região em produtora de energia excedente. O desafio, entretanto, é levar essa energia para onde ela é demandada — e o sistema atual não está preparado.
Os cortes determinados pelo ONS decorrem justamente da incapacidade de absorver toda a energia produzida em determinados horários. Com isso, o potencial competitivo do Ceará é desperdiçado, e a atratividade de novos investimentos fica sob risco. Para o Ceará, o corte de geração prejudica diretamente os empreendedores do setor de energias renováveis. Os contratos de longo prazo, que sustentam a viabilidade financeira dos parques eólicos e solares, ficam fragilizados. A incerteza afasta investidores, encarece financiamentos e coloca em xeque a continuidade da
expansão.
Além disso, a instalação de grandes datacenters no Ceará, motivada pela disponibilidade de energia limpa e pelo hub de cabos submarinos em Fortaleza, depende da segurança energética. Empresas globais como Google, Amazon e Microsoft só instalam infraestruturas críticas em locais capazes de oferecer estabilidade elétrica. Se os cortes persistirem, o Ceará pode perder a corrida por esses investimentos para concorrentes como Chile, México ou até mesmo estados do Sudeste.
Finalmente, o projeto mais ambicioso do Ceará é transformar o Porto do Pecém em polo global de exportação de hidrogênio verde. Ainda que sua produção hoje seja inviável por questões de tecnologia e de custos, será necessário produzir enormes quantidades de eletricidade renovável de forma contínua e previsível. Se o sistema não consegue sequer escoar a energia atual, como garantir a expansão para sustentar uma nova indústria eletrointensiva? É muito provável que essa combinação de restrições inviabilize o projeto.
De forma geral, podemos classificar o risco em três pontos principais: a confiança dos investidores, a competitividade internacional e o cronograma de resolução dosproblemas da rede de transmissão.
A impossibilidade de prever os cortes na geração de energia cria um ambiente deinsegurança para investidores. Sem clareza quanto às regras e possíveis soluções,bancos e fundos internacionais tendem a redirecionar seus recursos para outrosmercados considerados mais estáveis.
Ademais, projetos de datacenters e hidrogênio verde dependem de preços competitivos e garantia de fornecimento de energia. A instabilidade na oferta pode diminuir o diferencial competitivo do Ceará em relação a outros players globais, colocando em risco a atração de grandes investimentos.
Por fim, o fator tempo é decisivo no contexto atual. O mundo avança rapidamente para descarbonizar suas economias e estruturar cadeias de suprimento de baixo carbono. Caso o Brasil atrase o desenvolvimento de sua infraestrutura, corre o risco de perder o timing e ficar para trás na transição energética.
Resolver a limitação da rede não é simples nem rápido. Envolve obras de transmissão bilionárias, regulação mais ágil e adoção de novas tecnologias. Um plano de ação deve combinar curto, médio e longo prazo, articulando governo federal, estadual, setor privado e reguladores.
No curto prazo (até dois anos), as ações emergenciais envolvem acelerar leilões detransmissão para conectar o Nordeste aos grandes centros consumidores, incentivar soluções locais de armazenamento de energia, viabilizar contratos diretos entre produtores e grandes consumidores e promover uma gestão ativa da demanda, estimulando o consumo nos horários de maior geração renovável.
Para o médio prazo (até cinco anos), o foco está na estruturação do sistema, com a expansão das linhas de transmissão de alta capacidade, modernização tecnológica do ONS, integração da energia excedente ao hidrogênio verde e criação de incentivos fiscais e regulatórios para fortalecer o consumo e a industrialização regional baseada em energia renovável.
No longo prazo (mais de cinco anos), o objetivo é consolidar um novo paradigma energético, com uma rede elétrica descentralizada e digitalizada, consolidação do Pecém como hub mundial de hidrogênio verde, transformação de Fortaleza em polo de datacenters sustentáveis e fortalecimento de toda a cadeia produtiva renovável, impulsionando a geração de empregos qualificados e o crescimento econômico regional.
O Ceará tem todas as condições para ser protagonista da transição energética global: sol, vento, porto estratégico, conectividade digital e capital humano. Mas esses ativos só se transformarão em desenvolvimento se o gargalo da transmissão for superado.
O risco não é apenas perder bilhões em energia desperdiçada, mas também comprometer uma estratégia de futuro baseada em energias renováveis, datacenters e outras formas de energia. O mundo está em movimento acelerado, e o horizonte para implementar soluções é estreito: os próximos cinco anos serão decisivos. Se o Brasil modernizar sua rede e adotar soluções inovadoras, o Ceará poderá se consolidar como vitrine mundial da nova economia limpa. Se não, corre o risco de ver sua energia limpa se transformar em oportunidade perdida.
*Alex Araújo
Economista e ex-secretário do Desenvolvimento Regional do Estado.