“Quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se compatibilizam com os princípios e diretrizes constitucionais, ou, inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos”, aponta o jurista e professor Valmir Pontes Filho.
Confira:
“A Constituição, que é o arcabouço do denominado Estado de Direito, há de ser uma construção firme e inabalável, não podendo estar exposta a oscilações provocadas pela variação da conduta de governantes” (Valmir Pontes, 1961).
A Constituição não é um simples pedaço de papel, a ser ou não cumprida segundo as conveniências ou caprichos dos que exerçam cargos públicos de maior ou menor hierarquia. É ela – como regra que transforma o poder em competências – o breviário pelo qual se hão de guiar, mesurosos e submissos, tanto os governados quanto os governantes, estes últimos eleitos ou designados segundo as prescrições da Constituição e havendo prestado o juramento de defendê-la e cumpri-la.
Pois bem. Disto tudo é razoável concluir que quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se compatibilizam com os princípios e diretrizes constitucionais, ou, inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos, juridicamente insubsistentes1. Como igualmente adequado é observar que a abstinência do governo em tornar concretos e reais os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes constituirá uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente, de violação de direitos subjetivos dos cidadãos.
Interpretar significa, como anteriormente dito, extrair da regra jurídica o significado possível da linguagem jurídica nela contida; importa compreender a norma, especificando lhe, no limite do possível, o conteúdo. Óbvia a percepção, pois, de que essa tarefa não se pode (bem) desenvolver senão sistematicamente, ou seja, compreendendo-se o Direito como um sistema ou um conjunto de normas, logicamente encadeadas e tendo por suporte último de validade a Constituição.
Assim, em primeiro lugar se compreenda que nenhuma norma do sistema jurídico-positivo deve ser interpretada (e aplicada) senão à luz das regras e princípios constitucionais, de modo que, em cada situação singular, seu significado ou sentido seja extraído de forma a tornar operativos os superiores comandos da Constituição.
Em extraordinária síntese, Judicael Sudário de Pinho afirma ser “.. imprescindível que o intérprete procure as recíprocas implicações de princípios e regras até chegar à vontade unitária da Constituição, evitando-se contradições, antinomias e antagonismos aparentemente existentes entre suas normas… seguindo esse princípio, o intérprete estará orientado a considerar cada norma não como um elemento isolado ou disperso, mas como integrante de um todo harmônico e orgânico, um sistema unitário de regras e princípios… isso porque os princípios são verdadeiras bases do sistema jurídico-constitucional… são disposições fundamentais que se difundem sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critérios para a descoberta de seu verdadeiro significado”2.
Com efeito, não se ouve voz discordante da tese de que a exegese (interpretação/aplicação do Direito) – inclusive a da Constituição – há de ser sistemática, na exata medida em que a perquirição do sentido e alcance possíveis de uma determinada regra exige a de outras e, em especial, a dos princípios que inspiram e norteiam o sistema jurídico como um todo. Todavia, entre a postulação teórica e a atuação prática, neste particular, há um considerável fosso.
Um exemplo: quando a Constituição de 1988 impede, de forma peremptória, a discussão e votação, pelo Congresso, de propostas de emenda constitucional ofensivas ao princípio federativo, a que federação ela está a aludir? Àquela a que a doutrina tradicional se refere (na qual devem estar presentes pelo menos duas esferas de governo, é dizer, a do governo central e a dos descentralizados, estaduais), ou ao Estado Federal que ela mesma tratou de instituir, de forma mais complexa, porque constituída da união indissolúvel de Estados, dos Municípios e do Distrito Federal?
Exegese constitucional sistemática conduzirá, inevitavelmente, à segunda opção, já que, de acordo com o sistema da Constituição, o seu art. 60, § 4º, I, há de ter necessária conexão com o art. 1º, caput.
Ainda hoje, porém, mais de trinta e cinco anos depois de promulgada a “Constituição Cidadã”, relutam alguns operadores jurídicos em perceber, de um lado, que suas prescrições, principiológicas ou não, gozam da necessária presunção de plena eficácia (ou seja, só não se encontram aptas a produzir resultados quando isto se mostrar absolutamente inviável). Preferem, a mais das vezes, adotar raciocínio menor, conducente ao privilegiamento da lei em desfavor da Constituição, como se os princípios e as diretrizes (político-governamentais, inclusive) por esta adotadas não fossem regras vinculantes, mas simples “conselhos poéticos” do legislador constituinte.
De outro, não reparam que as construções doutrinárias e jurisprudenciais anteriores à Constituição só podem ser levadas em consideração se e quando compatíveis com as atuais prescrições desta. Mostram-se desatentos, pois, à circunstância de que a doutrina e a jurisprudência é que se devem adequar à nova ordem constitucional, e não o contrário. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gonet Branco aludem, com acerto, à necessária máxima efetividade da Constituição: “Estritamente vinculado ao princípio da força normativa da Constituição, em relação ao qual configura um subprincípio, o cânone hermenêutico-constitucional da máxima efetividade orienta os aplicadores da Lei Maior para interpretarem suas normas em ordem a otimizar-lhes a eficácia, sem alterar o conteúdo”3.
Vale retornar, ainda que aligeiradamente, ao tema da interpretação sistêmica do Direito: essa técnica necessariamente conduz o exegeta à reflexão de que nenhuma norma do direito existe isoladamente, como se cada uma delas fosse compartimento estanque, algo bastante em si; ao contrário, percebe ele que as regras de um dado sistema jurídico se encontram em permanente, contínua e inexorável conexão, sendo relevante notar que esse inter-relacionamento não se dá num plano só meramente normativo (é dizer, entre as simples normas), mas, muito especialmente, no plano dos princípios (ou das normas principiológicas), de tal modo a interpretação de uma norma (e em especial de um princípio) influi na de outra. Demais disso, às vezes é preciso equilibrar o sistema jurídico-constitucional, quando surgem os aparentes conflitos entre princípios, ocasião em que cabe ao intérprete, à luz da proporcionalidade, escolher aquele topicamente que se põe como mais importante.
A rigor, como já anteriormente salientado, nem é adequado falar-se em “técnica sistemática de interpretação” apartada das demais, posto que interpretar de forma não sistemática é, na verdade, não-interpretar (Juarez Freitas).
Exatamente em função da supremacia constitucional – a exigir que as demais manifestações normativas guardem compatibilidade com a Lei Maior, de natureza fundamentante – é que a interpretação desses atos normativos infraconstitucionais deve ser feita sob o pressuposto de que a Constituição é a fonte inspiradora dessa atividade hermenêutica. Trilhar outro caminho importa enveredar pela mediocridade no trato de assunto tão vital para o Direito.
Todos os operadores jurídicos, mas, notadamente (pela influência ou pelo resultado de suas dicções), os magistrados e os professores de Direito, têm o indeclinável dever de estar atentos a uma realidade: a de que o estudo sistematizado das leis ou códigos, por mais concretude ou especificidade que venha a ter, há de ser levado a efeito sob o influxo permanente dos princípios e regras constitucionais, posto que ninguém se poderá dizer, por exemplo, um “civilista”, um “penalista” ou um “administrativista” sem ser, antes de tudo um “constitucionalista”. E, não custa relembrar, a eles não pode faltar o discernimento necessário para distinguir entre princípios e regras, já que, segundo oportuníssima lição de Eros Roberto Grau, “… estas últimas operam a concreção daqueles: as regras são aplicações dos princípios. Daí por que a interpretação e a aplicação das regras jurídicas, tanto das regras constitucionais quanto das contempladas na legislação ordinária, não podem ser empreendidas sem que se tome na devida conta os princípios – notadamente quando se trate de princípios positivos do direito – sobre os quais se apoiam, isto é, aos quais conferem concreção”4.
Ao debruçar-se o jurista sobre um mero edital de licitação, não basta examinar se este se mostra adequado à lei. Muito mais importante será verificar se as suas prescrições, bem como as da própria lei em que o edital se funda, são compatíveis com os princípios constitucionais da isonomia, da boa-fé, da moralidade, da razoabilidade, da eficiência e superioridade do interesse público, dentre outros.
Mas não só na esfera do direito público assim se deve conduzir o intérprete. Também quando maneja institutos típicos do direito privado, como o da adoção e o da sucessão hereditária, é preciso “constitucionalizar” a percepção das normas legais disciplinadoras da matéria.
Na Constituição, é dizer, em suas normas e princípios, o intérprete/aplicador oficial (o juiz, por exemplo) encontrará, sempre, solução para os problemas, sem que seja necessário “substituir-se ao legislador” ou fazer uso de desmesurada discricionariedade judicial5. Com efeito, embora se deva ter como inspiração a interpretação da lei conforme a Constituição – hoje tão valorizada inclusive no âmbito da Corte Suprema – ela não pode conduzir o hermeneuta constitucional a exageros.
Observam os juristas, não sem razão, que se há de ter em mente a presunção de constitucionalidade das leis. Tal prudência, todavia, “…não pode ser excessiva, a ponto de induzir o intérprete a salvar a lei à custa da Constituição, nem tampouco a contrariar o seu sentido inequívoco, para constitucionalizá-la de qualquer maneira…em sede de controle de constitucionalidade, como todos sabem, os tribunais devem comportar-se como legisladores negativos, anulando as leis contrárias à Constituição, quando for o caso, e jamais como produtores de normas, ainda que essa produção se faça por via interpretativa. …Nos últimos tempos, a pretexto de otimizar a Constituição, as Cortes Constitucionais vêm proferindo decisões de nítido caráter legislativo, o que lhes têm custado críticas acerbas”6.
Não basta, entretanto, ter-se a mente avisada para a importância de proceder-se à interpretação das leis (no sentido amplo da expressão) de acordo com a Constituição. É fundamental a compreensão de que as próprias regras (normas comuns) da Constituição, ainda que gozem de supremacia em relação às demais, igualmente devem ser objeto de atividade interpretativa que privilegie os princípios constitucionais (as normas-princípio), sob pena de delas não se conseguir extrair o alcance e o sentido adequados.
Não apenas, frise-se bem, as prescrições insertas no Texto Supremo pela via das emendas constitucionais (de natureza hierarquicamente inferior, portanto), mas até mesmo aquelas produzidas pelo poder constituinte (as que compõem a Constituição como norma originariamente posta), hão de ser interpretadas/aplicadas de modo subserviente aos princípios constitucionais, explícitos ou implícitos7. Estes, por sua vez, haverão de ser “hierarquizados” – de modo que um prevaleça sobre outro – em cada caso, de acordo com as peculiares circunstâncias do problema a demandar resposta institucionalizada.
Outro ponto a merecer especial destaque é o relativo à maneira como a Constituição, considerada em seu todo, deve ser interpretada. Haveria, assim, uma “técnica especial” de interpretação constitucional? Afinal, como observaram Carlos Ayres Britto e Celso Seixas Ribeiro Bastos8, “… a Constituição é norma que repercute sobre o direito ordinário sem reciprocidade. Projeta influência sobre o direito ordinário, mas não é influenciada por estes. Vale dizer, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas a partir da Constituição, mas não o contrário… Lógica e cronologicamente, a Constituição se beneficia dos conceitos e demais noções teóricas ressaídas do direito infraconstitucional. Precede a todo arsenal doutrinário do direito comum e tem suas ‘verdades’ construídas a partir dela mesma. Seu caminho exegético há de palmilhar-se pela senda lógica que vai da norma anterior à posterior; da fundamentante à fundamentada; da referente à referida, da superior à inferior, não o reverso”9.
É de se ver, porém, que a afirmação comporta exceções: quando a Constituição, por exemplo, garante o direito à propriedade, haverá o intérprete de buscar o conceito de propriedade na legislação subconstitucional (no Código Civil).
É prudente reconhecer nas normas (e princípios) da Constituição, enfim, algumas características próprias, a justificarem um “manejo especial dos já conhecidos métodos de interpretação jurídica”. De acordo com Bastos e Britto, particularmente felizes em tracejá-los, os traços típicos dos modelos constitucionais seriam os seguintes: “… a) inicialidade, pertinentemente à formação originária do ordenamento jurídico, em grau de superioridade hierárquica; b) conteúdo marcantemente político, visto ser a Constituição o ‘estatuto do fenômeno político’…; c) estrutura de linguagem, caracterizada pela síntese e coloquialidade; e d) predominância das chamadas normas de estrutura (ou normas de organização, como prefere Bobbio), tendo por destinatário habitual o próprio legislador ordinário”10.
Se assim é, ou seja, se as regras constitucionais são iniciais e supremas, possuem forte densidade político-ideológica, destinam-se prioritariamente a gizar o comportamento e a atuação dos órgãos estatais (na medida em que, já se disse, transforma o poder em competências) e adotam linguagem eminentemente coloquial, comum e sintética, forçoso reconhecer merecerem elas, só por isso, trato hermenêutico diferenciado. Em relação a elas, pois, o intérprete/aplicador há de cercar-se de cuidados especiais, de modo a jamais lhes negar eficácia, lhes reduzir a abrangência, lhes nulificar os efeitos. Possuem até, segundo prescrição também suprema (CF, art. 102), um intérprete/aplicador oficial e privilegiado, ao qual incumbe, precipuamente sua guarda: o Supremo Tribunal Federal.
A este cabe – OU DEVERIA CABER – acima de tudo, velar para que a Constituição – disse-o bem o Ministro Celso de Mello – jamais seja vergada pela vontade dos órgãos constituídos ou sujeita ao império dos fatos e circunstâncias: “… a supremacia de que ela se reveste – enquanto for respeitada – constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos”11.
Este meu olhar sobre o tema hoje se revela nostálgico, frustrado e amargurado, diante da realidade trágica que estamos a vivenciar: O DIREITO ESTÁ ÀS CINZAS!
Valmir Pontes Filho é jurista e professor