“O fio da navalha*”

“Alguém na mesa percebe que estou divagando e cutuca-me daquele jeito irritante, com a pontinha do dedo em gesto repetido. Ninguém mais que o galhofeiro profissional”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório

Confira:

A prosa está oriental. O amigo discorre sobre a arte divina dos iogues que caminham sobre lâminas. O outro amigo gosta de fazer graça e solta que isso na Praça do Ferreira** jamais daria certo. A inevitável vaia desconcentra o sujeito e tome-lhe tragédia. Só de imaginar fico arrepiada. Conversa de mau gosto!

O apaixonado pela Índia volta à carga. O jejum e a meditação garantem o equilíbrio de qualquer ser humano. São a libertação, a força, a autonomia espiritual que conduz à material. As frases feitas, a superficialidade das sentenças, cansam-me um pouco. Porém, tenho imensa ternura pelo sincero interesse que o amigo possui por temas que prometem o nirvana, fonte de felicidade.

O arengueiro tenta retomar o seu posto e diz que nirvana não é coisa de macho. Recebe reprimenda das amigas presentes, levantando os braços num aceno de desculpas – Ninguém pode, nem brincar mais! – verbaliza baixinho, fingindo ofensa. É mais uma tentativa de continuar engraçado.

Falta-me coragem para puxar outra conversa. Eu que amo conversar, tenho andado receosa de ter desaprendido o jogo. Ou, talvez, me faltem parcerias interessadas. Surpreendo-me fugindo da arena, exatamente temendo que seja um ringue. Dizem que também um indiano, célebre, acho que Gandhi, o da guerra não violenta, dizia que só se deve falar se for para melhorar o silêncio.

Não sei. Talvez seja sem noção, essa possibilidade de melhorar algo que vai, necessariamente, deixar de existir com a intervenção. Tirando pelo fracasso da contradição do conceito de guerrear sem golpear, apenas sendo golpeado, dá para supor que o rapaz era incrível. Só que não acertou em tudo.

Alguém na mesa percebe que estou divagando e cutuca-me daquele jeito irritante, com a pontinha do dedo em gesto repetido. Ninguém mais que o galhofeiro profissional. Desvencilho-me. Não evito que me venha à mente o romance inglês provocativo do sentido da vida.

De William Samerset Maugham, o livro fala dessa trajetória delicada sobre lâmina de sabre, fina como uma linha invisível, onde equilibramos dias e noites para não ferir os pés. Nem a cabeça.

*Título da obra mais intensa de Samerset Maugham, nascido em Paris no século XIX, criado na Inglaterra, eternizado no mundo com romances carregados de psicologia, filosofia, pelo olhar das correntes reveladas a partir dos anos 20, do XX. Escreveu, também com intensidade, Servidão Humana e A Indomável, dentre dezenas.

**Praça histórica no centro de Fortaleza, famosa pela vaia, que os transeuntes soltaram para o sol, surgido atrás de nuvens que trariam a redentora chuva, em meados de 1942 – efeméride comemorada com programação cultural e solenidade, na Praça que até hoje reina com muitas árvores, a brisa do mar, moradores longevos e recentes. Assunto para outra crônica.

Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS