“Ao atacar o Brasil, Trump subestimou séculos de insubmissão, um sotaque que não abaixa a cabeça e o retorno simbólico do Nordeste”, aponta a jornalista Sara Goes
Confira:
Desde pequena, ouvi piadas que colocavam os nordestinos em contraste, como se cada estado tivesse um personagem próprio nesse enredo de provocações bem-humoradas. Sempre levei como parte daquilo que gosto de chamar de geopolítica nordestina, com seu jogo interno de ironias e afeto. Entre elas havia uma que nunca consegui repetir direito, porque sou péssima em guardar piadas. Era sobre um cliente escolhendo caranguejos para comprar, cada um representando um estado do Nordeste. Não lembro dos detalhes nem vale a pena reproduzir o desfecho depreciativo contra o Ceará e o Piauí, mas guardei a imagem do caranguejo pernambucano, aquele que tentava escapar o tempo todo, como símbolo de rebeldia e inconformismo.
Foi com esse espírito que Donald Trump resolveu brigar. Achando que enfrentava apenas um presidente, trombou com séculos de insubmissão, com a teimosia como herança política e com um sotaque que transforma ofensa em trincheira. Errou o tom, errou o alvo e errou o continente da lógica. Tentou impor tarifas e acabou tomando lição de soberania de um migrante que, mesmo vivendo longe de sua terra natal, carrega dentro de si o chão que o formou. Quanto mais o tempo passa, mais esse chão se impõe. A vida fora não dissolve a origem, adensa. A velhice, em vez de afastar, reconecta. É um retorno que não precisa de malas nem de estrada, acontece na fala, na memória, no gesto e na política.
Pernambuco não cria frouxo. De lá saíram a Insurreição contra os holandeses, a Revolução de 1817, a Confederação do Equador, a Revolução Praieira. Briga em Pernambuco nunca foi só por briga, foi por autonomia, por dignidade, por chão. A luta por conta própria virou método e memória. Resistir passou a ser identidade coletiva. Ao longo dos séculos, essa vocação se refinou em revolução, em rima de cordel, em símbolo político. Até chegar em Lula.
Lula não é fruto do improviso. É resultado direto desse acúmulo histórico. Filho de Dona Lindu, nascido na seca, embarcado em pau de arara, torneiro, líder sindical, criador de partido, presidente três vezes. Cada fase da vida foi uma disputa com quem dizia que ele não podia. Cada embate, uma reafirmação de que não largaria o fio que o liga ao lugar de origem. Esse fio é mais do que geográfico. É afetivo, cultural, linguístico e político. Com o tempo, em vez de se afrouxar, se fortalece.
Essa ligação ficou explícita no discurso que fez em Goiana, na inauguração da fábrica da Hemobrás. Lembrou que a disputa para receber o investimento foi dura: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ofereciam tudo, mas ele sabia que, para o Nordeste, uma fábrica desse porte era decisiva. Trouxe para Pernambuco por entender que desenvolvimento também é reparação histórica. Falou da infância em Garanhuns, da fome que o levou a São Paulo, do café com farinha como luxo possível e da marca de uma região tratada como fornecedora de mão de obra barata e invisível.
Para ele, governar é escolher de que lado se está, e sua escolha sempre foi a de colocar quem foi invisível no centro das decisões. Não se trata de tirar de uns, mas de garantir igualdade de oportunidades a quem nunca teve. Essa visão nasce de uma experiência marcada pelas injustiças históricas da migração nordestina, muitas vezes forçada pela seca e pelo abandono, que cria um vínculo invisível entre quem parte e a terra que fica. Com o tempo, esse vínculo se intensifica. O retorno não é físico, é uma incorporação. Quem viveu longe volta a ser, por dentro, o chão que deixou. Lula é a expressão política desse reencontro: jamais disfarçou a voz rouca, a fala direta e o afeto explícito. Não se ajusta ao protocolo da aparência. Carrega a terra que é.
Outro dia, em Osasco, disse com humor que os poderosos preferem seu vice, mais calmo, mais branco, mais disposto a negociar. Acrescentou que seu vice não é rouco nem bravo como ele. E ali estava o homem que aprendeu cedo que baixar a cabeça é aceitar a cangalha. Essa disposição não é apenas traço de personalidade, é um resultado de pertencimento que se aprofunda com o tempo, de quem já entendeu que a diplomacia mais firme nasce da memória mais enraizada.
Quando Trump impôs o tarifaço, imaginou que Lula viria pedir conversa. Mas quem cresceu sabendo que ferro na porta é sinal de perigo não se recolhe. Reage. Lula pegou a ofensiva e transformou em palanque, em plano, em plataforma internacional. Enquanto Trump falava na linguagem binária da força, Lula respondia com soberania, comércio justo e recusa em ocupar papel subalterno. Evocou o golpe de 1964, a história, a dignidade e ainda avisou que quem ia pagar a conta era o povo americano, que ficaria sem picanha na grelha.
Na prática, lançou o Plano Brasil Soberano, mobilizou o BRICS, acionou a reciprocidade comercial. Transformou retaliação em oportunidade. O que parecia fraqueza virou pulso. Trump trouxe chumbo, Lula devolveu com engenharia institucional e sotaque que carrega sua terra inteira.
O maior erro de Trump foi pensar que enfrentava um político comum. Encontrou um presidente com memória, biografia e raízes que o tempo só fortaleceu, alguém que representa um povo antes humilhado e que agora fala alto porque sabe que é escutado. E foi nesse ponto que Lula resumiu, em uma frase, a força que o move: “Nós somos da paz, mas não mexa com nós porque nós temos sangue pernambucano”
Porque você pode sair do Ceará, de Garanhuns, do sertão ou do mangue, mas se carrega essa terra por dentro, ela segue governando seus passos e sustentando sua voz. Como o caranguejo pernambucano que insiste em escapar, liderando revoluções e provando que a rebeldia está na raiz pernambucana.
Sara Goes é jornalista e âncora da TV 247 e TV Atitude Popular. Nordestina antes de brasileira, mãe e militante, escreve ensaios que misturam experiência íntima e crítica social, sempre com atenção às formas de captura emocional e guerra informacional. Atua também em projetos de comunicação popular, soberania digital e formação política. Editora do site codigoaberto.net