Com o título “O Moderno Móvel da Guerra”, eis artigo de Dalton Rosado, advogado e escritor participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CDPDH), da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980.
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“A primeira vítima da guerra é a verdade.” Hiram Warren Johnson
As guerras ao longo da história sempre se caracterizaram pelo desejo de subjugação política territorial com sentido de exploração de riquezas materiais ou escravismos de uns grupos sobre outros, ou seja, sempre teve um móvel mesquinho próprio à segunda natureza humana em desenvolvimento e ainda com resquícios da primeira natureza humana irracional.
Entretanto, em nenhum momento da história humana se matou tanto em guerras como nos últimos 200 anos de desenvolvimento do capitalismo que vão desde as guerras napoleônicas da consolidação do republicanismo militarista nascente, passando por duas guerras mundiais e chagando até as ameaças de guerra nuclear dos dias atuais.
O capital é belicosamente genocida, individualista, antissolidário, negativamente meritocrata competitivo, mesquinho, racista, misógino, xenófobo e prepotente porque dá ordens absolutistas letais aos seus súditos inconscientes da servidão a que se prestam.
O pequeno comerciante de bairro, outrora assalariado, tem como objetivo inescapável o desejo de ampliar mercado, porque mesmo sem compreender cientificamente a essência constitutiva do capital e sua necessidade de autorreprodução ad infinitum (já aí uma contradição com os limites do consumo) sem a qual ele sucumbe, ele percebe, na sua sensibilidade de esperto negociador, que há uma lei de mercado segundo a qual “quem não cresce, decresce”.
Assim, ele é inimigo na guerra concorrencial de mercado com seu concorrente de bairro, ainda que se cumprimentem nas reuniões da escola privada a que os dois têm acesso, vez que seus filhos não querem que estes estudem na escola pública carente de tudo (são membros da precária elite entre os muitos comunitários pobres).
Este é um exemplo microssocial do caráter negativamente individualista, antissolidário e negativamente competitivo da relação social sob o capital que se reproduz na escala macrossocial política e econômica.
O capitalista conservador inverte os conceitos e transforma o que é negativo em positivo. Vejamos alguns poucos exemplos:
– A história da negação vacinal remonta, no Brasil, aos idos de 1904, quando Osvaldo Cruz aconselhou a vacinação obrigatória contra a febre amarela, varíola e peste bubônica, causando revolta na população do Rio de Janeiro, mesmo diante das muitas mortes epidêmicas que estavam ocorrendo; se dizia que Deus era contra aquela bruxaria, algo parecido como virar jacaré ou homossexual;
– A vitória destrutiva do outro na competição mercantil fratricida se transforma em justa recompensa pelo viés da meritocracia;
– O rico é rico porque é inteligente e trabalhador é pobre porque é ignorante ou preguiçoso;
– As melhorias urbanas dos bairros ricos contrastando com os bairros pobres de uma cidade socialmente cindida, se justifica por conta da necessidade de se promover o turismo, por questão de antiguidade residencial, das edificações públicas importantes, pela cobrança diferenciada de impostos sobre a propriedade urbana, etc;
– O engarrafamento do trânsito nas grandes cidades entupidas de carros e sem transporte público adequado, se deve à incompetência administrativa governamental, e não ao irracional sentimento burguês de comodismo individual de uso de seus carros confortáveis;
– O incrível aumento da criminalidade se deve à deficiência policial e abrandamento das penas e liberalidades aos presos, sem se compreender o alto custo de combate à criminalidade numa sociedade que produz altos níveis da dita cuja pela desigualdade social e maus exemplos (o capital é intrinsecamente corrupto);
E por aí vai…
Ora, plasmadas sob um contrato social injusto, como poderiam as nações constituídas sob um nacionalismo capitalista xenófobo, praticarem uma cultura de paz???
A guerra já começa no interior de uma sociedade socialmente cindida que induz a um processo de criminalidade impossível de ser contido pela força militar, sem se compreender o alto culto do combate à dita cuja, que vai desde o policiamento ostensivo preventivo, processamento judicial e aprisionamento carcerário. Um crimino preso, processado e condenado, é muito mais caro do que um professor.
A guerra nada mais é do que a explicitação genocida de uma concepção de relação social política e econômica injusta praticada no interior das nações e nas relações destas com todas as outras.
Os antigos feudos transitaram das guerras de conquistas desde antes do Império Romano que instituiu as legiões romanas (uma espécie de exército a soldo de salário em dinheiro) até a criação das nações numa tentativa de moderna hegemonia econômica destas e, agora, por blocos capitalistas insanos.
Do mesmo modo que as cidades burguesas são cindidas em bairros pobres (a maioria) e bairros ricos (a minoria); os países nacionais, mesmo com gradações diferenciadas de consumo dos seus habitantes, e de acordo com seus padrões de produção de mercadorias e exportação destas com valores agregados (uma pílula de combate aos vermes de cachorros patenteada é mais cara do que um saco de feijão), obedecem a critérios de pobreza e riqueza próprios à exploração do capital; bem como as nações entre si obedecem a estas características de ilhas de riqueza e oceanos de pobreza.
Ora, se desde o pequeno comerciante de bairro se processa uma guerra autofágica na qual se concentra a riqueza e se destrói pela competitividade o concorrente, como se pode querer que as nações sejam solidárias uma com as outras evitando as guerras genocidas de conquistas quando dependem do mesmo critério existencial autofágico de busca de conforto e bem-estar???
Não se trata, portanto, de uma questão de falta de consciência humanitária, ainda que isto se manifeste claramente, mas de uma concepção de relação social decadente que busca nas guerras uma solução que jamais virá por essa via e que ameaça a todos de extinção.
O FMI avisa que a fome no mundo está aumentando. Ora, quando se busca a sobrevivência de um contingente humano diante da escassez de provimento desta mesma sobrevivência, a resultante lógica é a guerra fratricida.
A queda na capacidade de consumo pelo critério da compra e venda representa redução da produção de mercadorias, vez que sob a lógica capitalista somente de produz o que se vende e esse é o começo do final da linha histórica.
O fluxo da economia necessita de produção de valor a qualquer custo, principalmente para financiar o setor terciário (da mercadoria serviços, maior parcela componente dos PIBs mundo afora, que não produz valor novo); mas valor válido somente pode existir pela produção de mercadorias dos setores primário (agronegócio) e secundário (industrial).
Aí está o nó górdio da crise do capital, porque a emissão de moeda sem valor válido representa vida artificial capitalista por aparelhos, que não se sustenta por muito tempo.
Esse é o móvel do adensamento das guerras atuais: a tentativa inglória de sobrevivência nacional dentro de um modelo que atingiu o seu limite de expansão interno (a impossibilidade de reprodução de valor válido) e externo (a impossibilidade de contenção da crise ecológica que lhe é incidental).
A transição para a terceira natureza humana, se não sucumbirmos diante da sanha genocida do capital que precisa urgentemente ser superado sem as firulas de reformas que apenas o conservam na sua essência, representará a ruptura com a irracionalidade socialmente destrutiva e autodestrutiva da própria forma abstrata de comando negativo da relação social sob a qual vivemos e tal ruptura promoverá o raiar luminoso de um novo dia.
*Dalton Rosado
Advogado e escritor participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CDPDH), da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980.