“O novo golpe é digital e já está em curso” – Por Henrique Pizzolato

Henrique Pizzolato é bancário

“Sem censura direta, o poder agora se impõe pela manipulação algorítmica, pelo excesso de versões e pelo colapso da confiança pública”, aponta Henrique Pizzolarto, ex-presidente da CUT do Paraná e ex-sindicalista.

Confira:

Durante décadas, a esquerda esteve vigilante contra os golpes militares, os regimes de exceção e as formas tradicionais de autoritarismo. Aprendemos a resistir à censura explícita, à tortura nos porões do Estado e à repressão que usava farda e fuzil. Mas o século XXI trouxe um novo tipo de guerra, mais insidiosa, mais sutil, mais eficaz. Uma guerra não contra corpos, mas contra consciências. E ela não é travada nas ruas ou nos parlamentos. Ela acontece em servidores, plataformas e algoritmos. A democracia, hoje, não está sendo destruída por tanques. Está sendo implodida por cliques.

Edward Snowden nos avisou. Em 2013, quando revelou ao mundo o sistema massivo de vigilância operado pelos Estados Unidos em colaboração com empresas privadas de tecnologia, muita gente achou que o escândalo se resumia à espionagem. Mas o que Snowden apontava era muito mais profundo. Seu alerta verdadeiro era este: o futuro da dominação política não seria construído pela censura direta, mas pelo excesso de versões. Pelo caos informacional. Pela perda deliberada da confiança entre as pessoas, entre cidadãos e instituições, entre o que se vê e o que se acredita. Hoje, essa profecia se realiza diante dos nossos olhos.

As redes sociais, vendidas como espaços de liberdade, são na verdade plataformas de manipulação comportamental em escala industrial. Seus algoritmos não são neutros. Eles não apenas preveem nosso comportamento: eles o moldam. E fazem isso a serviço de quem paga mais. O conteúdo que você vê não é o mais verdadeiro. É o mais rentável. O que gera mais tempo de tela, mais engajamento, mais cliques. O que acende mais polêmica e ódio. Mentiras viajam mais rápido do que a verdade porque são mais lucrativas. E nesse mercado, a verdade se tornou irrelevante.

A consequência disso é devastadora. A política virou espetáculo. O jornalismo virou entretenimento. A militância virou meme. E a cidadania virou dado.

Mas a estratégia é ainda mais perversa. O objetivo real não é apenas desinformar. É confundir a todos até que ninguém mais saiba no que acreditar. É criar um terreno onde toda versão é possível, toda imagem pode ser falsa, todo vídeo pode ser gerado por IA, toda voz pode ser clonada, toda acusação pode ser desmentida, toda verdade pode ser ridicularizada. O novo autoritarismo não precisa calar ninguém. Basta fazer todo mundo duvidar de tudo.

Vivemos o tempo da hiper-realidade, como alertou Baudrillard. O tempo em que a simulação substitui a experiência direta. Em que o real é substituído por sua versão mais convincente, mais emocional, mais compartilhável. Hoje, uma notícia falsa com trilha sonora, narração e efeito visual é mais “crível” do que uma reportagem jornalística baseada em documentos. A dúvida virou método. O boato virou argumento. A viralização virou prova. Isso destrói o que há de mais básico na vida em sociedade: a confiança mútua.

Sem confiança, não há pacto social. Sem pacto, não há democracia possível. Quando ninguém mais acredita em nada, quando toda instituição parece podre, quando todo dado pode ser manipulado, não é a verdade que vence. É o cinismo. É a desistência. É a indiferença. E a indiferença é a semente do fascismo.

Quem controla os dados, decide a realidade. Você já se perguntou por que as maiores empresas do planeta são todas de tecnologia e dados? Porque no século XXI, os dados são mais valiosos que o petróleo. E quem os controla, controla a narrativa. Controla o fluxo da informação. Controla a percepção do que é o mundo. Quando uma plataforma decide o que vai aparecer no seu feed, ela está moldando sua visão de mundo. Quando ela impulsiona um conteúdo e silencia outro, ela está interferindo politicamente. A neutralidade é uma farsa.

E o mais assustador é que esse poder não está submetido a nenhuma regulação democrática. Não passa por eleições. Não presta contas ao público. Está nas mãos de bilionários do Vale do Silício e de interesses geopolíticos obscuros.

Você confia que uma eleição não pode ser manipulada por inteligência artificial? Você confia que os vídeos que você viu realmente aconteceram? Você confia que sua opinião é sua?

O novo golpe é digital. E já começou. Não estamos falando de ficção científica. Já existem campanhas inteiras sendo orquestradas com deepfakes, bots, contas automatizadas, robôs de engajamento, microtargeting emocional. Já vimos redes de fake news sustentarem candidaturas. Já vimos algoritmos distorcerem o debate público. E já vimos a esquerda ser sistematicamente sabotada por essas engrenagens invisíveis.

Não se trata apenas de combater as fake news. Trata-se de reconhecer que a arena política foi sequestrada por uma lógica privatizada, antidemocrática e colonizadora. Uma lógica que não respeita soberanias nacionais, não responde a tribunais constitucionais e não tem qualquer compromisso com o bem comum.

O que fazer? A resposta não virá do Judiciário. Não virá das plataformas. Não virá da boa vontade das big techs. Só a organização popular, a pressão política e a mobilização coletiva podem deter esse processo.

Precisamos de regulação urgente das plataformas. Precisamos de transparência total nos algoritmos. Precisamos proteger os dados dos cidadãos como protegemos suas casas. Precisamos de educação midiática crítica nas escolas, nas periferias, nas igrejas, nas universidades. Precisamos reconstruir o tecido da confiança pública com base em participação popular e soberania informacional.

E acima de tudo, precisamos entender que o novo golpe não virá com tanques, mas com likes. Não usará coturnos, mas códigos-fonte. Não censurará com mordaça, mas com excesso de versões.

A esquerda, se quiser sobreviver, precisa travar essa batalha no campo onde ela acontece: o digital. Porque quem controla os dados, decide o destino. E se não agirmos agora, pode não haver mais eleição legítima para disputar amanhã.

*Henrique Pizzolato

Ex-presidente da CUT do Paraná, ex-diretor da Previ e do Banco do Brasil, militante de Direitos Humanos e membro da Rede Lawfare Nunca Mais.

COMPARTILHE:
Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
Email

Uma resposta

  1. E foi iniciado há muito tempo.

    DOSSIÊ DOS ALOPRADOS, por exemplo.
    E Pizzolato ficou calado!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais Notícias