Com o título “O olhar que fala”, eis artigo de Suzete Nocrato, jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará. Mais uma tocante história de sensibilidade.
Confira:
A jovem senhora entra no consultório médico com passos lentos, como se nascesse naquele instante. Vai em busca de respostas que a alma sussurra em silêncio. O que estaria acontecendo com o seu cérebro? Seriam os neurônios se apagando devagar, como luzes de um velho bairro ao fim do dia? Ou seria apenas o susto do envelhecer — esse espelho impiedoso do tempo que nos devolve versões de nós que ainda não reconhecemos? Talvez a culpa seja da rotina, que, impassível, nos ensina a viver sem pertencimento, pagando caro por tudo aquilo que desejamos ou precisamos.
A sala de espera está cheia. A senhora, com o olhar pedido como se visse o mundo pela primeira vez, se acomoda num canto. Tenta disfarçar a inquietação. Foi em busca de respostas para a forte dor de cabeça que a surpreendeu dias atrás — uma dor diferente, aguda, como um sinal vindo de dentro. No íntimo, teme o pior: um AVC, um aneurisma, algo que possa apagar quem ela é, de uma hora para outra. Tenta disfarçar a ansiedade, como se tivesse aprendido a conviver com o silêncio das incertezas.
Enquanto espera, se torna expectadora da vida alheia, como quem assiste a um teatro improvisado de dores e esperanças. Vê um marido segurando firme a mão da esposa; uma mãe ninando o filho pequeno no colo; um adolescente guiando a avó de passos hesitantes; um jovem relatando o Alzheimer do pai e o medo do seu próprio esquecimento. Todos ali estão em busca da cura, seja do corpo, da mente ou da alma.
De repente, seu olhar cruza com o de um menino de cerca de 12 anos — traços delicados, sorriso espontâneo, olhos vivos que parecem conter mais mundo do que palavras possam descrever. Ele tenta interagir com as pessoas ao redor, apesar da fala ser embaralhada, de difícil compreensão. A mãe, gentil, apressa-se em explicar que o filho tem TEA — Transtorno do Espectro Autista.
Mas antes da explicação, já havia o encontro. O olhar daquele menino desarma a jovem senhora. Há algo ali que transcende diagnósticos, que comunica sem ruídos, sem necessidade de tradução. Algo que fala da vida com um amor essencial — silencioso, porém inteiro. Naquele breve instante, ela compreende que não existam respostas fáceis e que há beleza em continuar buscando. Ainda há verdade nos encontros. E amor no que não se diz.
A porta do consultório se abre. Chamam seu nome. Ela se levanta devagar, como quem desperta de um sonho ou retorna de uma viagem interior. Carrega consigo a dúvida — e o olhar do menino, guardado como um sussurro de esperança. Talvez não encontre todas as respostas. Ou nenhuma. Mas algo dentro dela mudou. Porque há silêncios que falam, encontros que curam, e instantes breves que acendem uma luz — mesmo por breves instantes.
E, assim, com passos lentos, ela atravessa a porta. O coração, em silêncio, continua a lembrar que vale a pena amar a vida.
*Suzete Nocrato
Jornalista e Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.