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“O Pobre e a Pobreza”

Rafael dos Santos da Silva preside o CDH da UFC. Foto: Arquivo Pessoal.

Com o título “O Pobre e a Pobreza”, eis artigo de Rafael Silva, presidente da Comissão de Direitos Humanos daUFC e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra (FEUC/CES). Uma reflexão epistemiológica interessante.

Confira:

Ao sair de um restaurante na cidade de Fortaleza, Nordeste do Brasil, tinha nas mãos uma pequena marmita onde acondicionava as sobras da refeição que acabara de realizar. Antes mesmo de chegar ao fim da primeira quadra um trabalhador que catava lixo fixou-me o olhar e sem que nos falássemos estiquei a mão entregando-lhes aquele alimento. Nesse instante, me perguntei por que aquele indivíduo que trabalhou bem mais do que eu não tinha sua refeição garantida? Ele, imerso na pobreza absoluta circulava à cidade a procura de “um pouco, quase ou nada” que lhe permitisse acessar o mais básico que o mundo civilizado convencionou chamar de refeição. Logo uma pergunta central se apresentou: por que ele é pobre? Para responder a esta questão é fundamental recuperar a diferença entre o pobre e a pobreza? Existe? Sim, e se mostra dialeticamente profunda.

Em tempo, a motivação inicial deste texto passa essencialmente pela tentativa de responder a uma verdadeira confusão epistemológica havida entre a definição da pobreza e sua diferença em relação ao pobre. Não é de hoje que esse tema ocupa a sociologia. Mesmo quando essa ciência ainda não havia sido sistematizada, o britânico John Bellers [1696] ponderou para os desequilíbrios entre trabalho e capital elaborando aquilo que ficou conhecido por Labor Exchange. Em seguida, coube ao famigerado Jeremy Benthem [1794] se ocupar de elaborar o seu questionado método denominado por Panóptico. Mas recentemente Alex de Tocquelille articulou o paradigma da igualdade em que a democracia liberal deveria apontar o fio condutor das relações de troca que pusesse fim à pobreza. Na sequência, coube a K. Marx e F. Engels inovaram na leitura radical sobre o tema ao apresentar o paradigma da exploração colocando no centro do debate à questão da economia e sobretudo, da política. No entanto, foi somente no início do século XX que o sociólogo alemão Georg Simmel melhor compreendeu o contexto sobre o tema propondo a leitura construtivista daquilo que ficou conhecido por solidarismo.

No curto, mas denso trabalho Le Pauvre George Simmel, inaugurou as bases de uma sociologia da pobreza, cuja principal reflexão consistia em separar de forma pedagógica o pobre e a pobreza. A principal diferença, segundo o autor, se dá na perspectiva de que a pobreza responde a uma dimensão sociológica, portanto serve para aprimorar os conceitos relativos as estruturas sociais que condicionam a vulnerabilidade nos indivíduos. Segundo Anete Ivo, socióloga brasileira autora do livro “Viver por um Fio” pela primeira vez Simmel vai elaborar uma síntese profunda se valendo de uma abordagem construtivistas, sobre o fenômeno estrutural da pobreza sem deixar contudo de enxergar suas consequências, o pobre. Para ela, tendo por fio condutor os elementos da ética e da moral, Simmel articulou os aspectos coletivos movidos a partir das instituições que por inércia ou ação afetam individualmente os membros de uma sociedade determinando quem serão os pobres. Portanto, Simmel, no bem dizer de Ivo “analisa a pobreza e ao mesmo tempo a condição de ser pobre.” Nesse sentido, somente a partir de Simmel foi possível falar em “cidadania republicana” e com isso abriu-se espaço para se alcançar sociologicamente a construção política da pobreza.

Ora, sabe-se, contudo, que tal construção permite acessar ainda a dimensão isolada da questão maior, e com isso emerge renovada a conceitualização do pobre que na visão de Simmel são aquelas pessoas que “confrontadas a realidade específica de cada lugar devem receber assistência material” constituindo assim a dimensão da pobreza relativa. Mas, relativa a quê? Relativa a funcionalidade coletiva. Razão pela qual “o pobre é necessariamente aquele indivíduo que se apresenta excluído.” Contudo, por pertencer a coletividade, ou seja, a sociedade, é dele o direito primário de acessar aos mais amplos ciclos políticos de sua comunidade. Sendo nesse limite as categorias dos direitos sociais pré-existentes à dimensão da obrigação.

Nessa dimensão, individualizada, encontra-se o pobre, que fundamentalmente responde a uma condição material socialmente produzida. Alijado de uma determinada dinâmica de produção e consumo aprofundada cada vez mais a partir da dinâmica do (des)envolvimento do capital.

Somente assim é possível distinguir a pobreza enquanto uma categoria sociológica, e o pobre na sua dimensão política. Quais as contribuições poderíamos extrair disso? Ao modo desta escrita, a boa definição de tais categorias possuem a capacidade de inserir no debate público a questão social da pobreza, ao mesmo tempo que noutro estágio de debate, é possível contribuir com novas formulações políticas de enfrentamento a pobreza, sem, contudo, culpabilizar o pobre. Em última, instância, o debate se bem orientado permite ao Estado, no bem dizer de Simmel, “evoluir suas ações do campo da caridade privada para as garantias das condições mínimas da vida.”

Com isso, quando bem definida a distinção entre o pobre e a pobreza desmistifica o assunto, essencialmente por possibilitar emergir uma determinada epistemologia da pobreza, para a partir daí ser possível identificar os níveis de vulnerabilização imposta pela dinâmica social. Logo, o assunto se concentra especialmente em analisar as estruturas sociais, políticas, ambientais, econômicas e institucionais da sociedade, posto que localiza o pobre na sua expressão política atingido individualmente pelos efeitos da pobreza. Aqueles por serem pessoas individualizadas agem de igual modo individual com forte tendência à desfiliação, limite extremo do processo de vulnerabilização.

De volta ao nosso exemplo, quando encontrei um trabalhador em situação de fome e tendo eu nas mãos as “sobras” do almoço, fico cada vez mais convencido de que agi plenamente no campo da caridade. Numa ação micro que tem impacto relevante na vida do pobre, sem, contudo, mudar sua condição de pobreza. Houvesse mesmo uma ação coletiva baseada no acesso a dimensão dos “direitos mínimos de cidadania” com forte apelo à redistribuição, simplesmente eu teria voltado para casa com a marmita nas mãos. Nesse momento, estaríamos socialmente articulando uma forma eficiente o enfrentamento a pobreza enquanto condição socialmente imposta ao pobre.

Por tudo, o pobre e a pobreza são duas categorias diferentes de análise social. Vê-las separadamente torna possível identificar a melhor ação coletiva. Entretanto, são dialeticamente unidas seja pela cultura forjada no reducionismo do caminho fácil de culpabilizar o pobre por sua pobreza, ou mesmo no campo prático da espacialidade urbana de alguma metrópole.

Finalmente, renovado naquilo que L. Boff sustenta em seu mais recente texto “A força histórica dos pobres e oprimidos” “temos que ouvir os pobres… sem a sabedoria deles não salvaremos nossas sociedades” e acrescento: nem nos livraremos da pobreza. Cabe, pois a este texto recuperar as linhas mestras da sociologia da pobreza para propor elementos teóricos capazes de redesenhar a ação prática da vida cotidiana do pobre afetado pela pobreza.

*Rafael Silva,

Presidente da Comissão de Direitos Humanos daUFC e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra (FEUC/CES).

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