“Revoluções e golpes, enfim, acontecem ou não, independentemente das estipulações constitucionais a respeito”, aponta o advogado Valmir Pontes Filho.
Confira:
Deve-se enxergar o Poder Constituinte como a capacidade, incontrastável e insubmissa a qualquer regramento jurídico anterior, de produzir uma Constituição, norma de maior hierarquia do sistema jurídico de Estado soberano e que serve de fundamento para todas as demais manifestações normativas, estatais ou não. Daí tratar-se ele de uma força ou capacidade de índole política, é dizer, não sujeita a quaisquer regras jurídicas pretéritas que lhe gizem a atuação, quer quanto à forma, quer quanto ao conteúdo. Cumpre observar que esse poder é necessariamente originário, donde se concluir ser pleonástica a expressão “poder constituinte originário”. Se esse poder é constituinte, assim o é exatamente por ser originário. E é originário precisamente por constituir inicialmente o Estado.
Eis o motivo pelo qual se pode asseverar que o eventual exercente do poder constituinte tem o condão de incluir, no Texto Constitucional que está a produzir, as prescrições que considerar adequadas, independentemente do que os sistemas jurídicos até então positivados hajam disposto. Nenhuma normatização jurídico-positiva anterior lhe cerceará ou induzirá a vontade e o agir, exatamente porque a ele é que cabe, em caráter originário, editar a Lei Suprema de um dado Estado.
Questão bastante discutida tem sido a pertinente à titularidade desse poder constituinte. Mas ela, definitivamente, não pode ser respondida pelo cientista do Direito, por uma única e simples razão: a ordem jurídico-positiva não é capaz, sob o ponto de vista lógico-normativo, de estabelecer prescrições no sentido de indicar a quem caberá a tarefa de inaugurar aquela que lhe vai suceder, criando, consequentemente, um novo Estado soberano. Nenhuma Constituição irá, enfim, antecipar sua própria morte, dizendo em que condições ou em qual momento se dará a elaboração de uma outra, capaz de promover a sua revogação. Seria desarrazoado, com efeito, supor que a vigente Constituição brasileira (de 5 de outubro de 1988) cuidasse de prever, ainda que de molde a estimular ou impedir, a deflagração de um movimento revolucionário popular ou de um golpe de estado, qualquer deles destinados a varrer do mapa as instituições político-jurídicas que ela mesma engendrou.
Revoluções e golpes, enfim, acontecem ou não, independentemente das estipulações constitucionais a respeito. São episódios político-sociais – a importar, no feliz dizer de Lourival Vilanova, uma ruptura na continuidade jurídica – que não podem, por imperativo de ordem lógico-jurídica, repita-se, estar normativamente estabelecidos na Lei Suprema de país nenhum do mundo, em época alguma. E caso existam, tais previsões normativas, serão inócuas.
Neste sentido é a sempre segura lição do mestre Paulo Bonavides, para quem é impossível “… conter, debaixo de certos limites, nos moldes de uma Constituição, o poder constituinte. Seu exercício, visceralmente político, não se sujeitaria, por natureza, a confinar-se dentro das fronteiras jurídicas traçadas pelo texto constitucional” . Afinal, se uma tentativa revolucionária restar frustrada, seus protagonizadores deverão, segundo a ordem jurídica vigente, sofrer as sanções nela previstas. Caso, todavia, for vitoriosa, dela brotará uma nova ordem, à qual os defensores da que lhe antecedeu se devem dobrar .
Na esteira do pensamento de Paulo Bonavides, deve-se entender como “revolução” aquele movimento tendente a substituir uma dada ordem constitucional positivada por outra, preferida pelos seus promotores. Essa revolução não será necessariamente armada e sangrenta: se adotados caminhos não violentos, ter-se-á a chamada “revolução limpa”, em princípio legítima, posto que merecedora do apoio popular. Já a revolução armada (“sangrenta”) poderá não sê-lo, assim como em princípio não são legítimos os “golpes de estado”, embora pretensamente desferidos em nome do “interesse popular” ou “nacional”.
Precisas, a respeito, as lições do já citado Prof. Lourival Vilanova: “… a revolução muda a Constituição, descontinua o processo de criação do direito, instaurando Constituição nova… No intertempo de uma Constituição que fenece e uma outra Constituição que surge, para preencher o vazio de governo (anarquia) e o vazio de normas (anomia), instala-se o governo-de-fato. O processo de poder personifica-se no governo provisório, emergente do processo revolucionário. No processo revolucionário mesmo já se forma a elite dirigente… processo que é de dinâmica sociológica. O poder toma a forma de governo-de-fato porque não tira sua legitimidade (no sentido de validade) na ordem jurídica anterior. Desfeita a ordem jurídica anterior, nenhum critério normativo o qualifica como fato jurídico, lícito ou ilícito” .
Em irrepreensível linha de raciocínio, continua o alumiado jusfilósofo pernambucano: “… A revolução é um processo de mutação jurídica que não se comporta em limitações de um ordenamento, por isso que é a retomada da força. Dentro do ordenamento vigente, a força pressupõe infringência de uma norma e vem, por isso, como sanção, que é, assim, sempre condicionada à realização do antijurídico. A revolução desfaz os tipos de antijuridicidade, antes os quais seria a consequência sancionadora. É a força, pois, sem ser a sanção do antijurídico… Desfazendo toda tipificação normativa, do lícito e do ilí¬cito – por isso é revolução – da conduta, a revolução se coloca sobre o ordenamento vigente e antes do ordenamento a ter vigência. Nunca está dentro do ordenamento” .
O Poder Constituinte, enfim, segundo Tagle Achával – “… pressupõe uma situação jurídica virgem, diríamos, em que não há Estado nem, por consequência, ordem jurídica que o sustente. Em tal caso estamos diante do que temos chamado uma situação política ‘pura’, em que o poder constituinte é soberano, já que não há sobre ele órgão jurídico algum que possa revogar sua decisão, e é ilimitado no sentido de que tem poder para elaborar a constituição com os conteúdos que entenda procedentes, sem limite jurídico algum”.
Quanto ao exercício desse poder constituinte cabe, sim, discutir a sua legitimidade. Se ele se deu pelo povo, diretamente ou por seus representantes, eleitos para esse específico fim (o de elaborar uma nova Constituição), dir-se-á que esse exercício foi formalmente legítimo . Caso o tenha sido por um ditador ou por grupo oligárquico, armado ou não, que haja empalmado o poder à revelia da vontade popular, assegurar-se-á que o seu exercício se deu de forma ilegítima.
Mas a discussão não se afigura tão simples assim, desde que se levem em conta certas variantes. Poder-se-á chamar de ilegítimo o exercício do poder constituinte pelos que tenham integrado a cúpula de um movimento revolucionário armado, mas deflagrado com nítido apoio popular? Talvez não! De outra sorte, essa legitimidade originariamente adquirida é permanente ou poderá desgastar-se com o tempo, à custa da prática de atos arbitrários, de perseguição político-ideológica, com os quais não concorde o povo? De certo que sim!
A todos os que almejam a instauração de um Estado cujo governo se inspire nos moldes democráticos, só parecerá politicamente aceitável o exercício legítimo e pacífico do Poder Constituinte. Tal não significa dizer que isso sempre tenha de ocorrer, nem muito menos que sempre haja ocorrido, por mais que a ideia infelicite e desagrade aos amantes da liberdade e da democracia. Demais disso – e a consideração igualmente tem seu viés político – cumpre sustentar a tese, de irretorquível logicidade, segundo a qual a atividade constituinte jamais deverá ser delegada a qualquer dos órgãos constituídos (pela Constituição, obviamente), mas, sim, a um órgão constituinte (originário) exclusivo, a ser dissolvido após o cumprimento de sua missão. Assim elaborada a Constituição, a esta é que caberá dizer quais serão os órgãos (constituídos) de governo, como se dará a investidura de seus integrantes e quais virão a ser as suas funções, a serem exercidas sempre em nível infraconstitucional, mesmo quando se tratar de reformar a própria Constituição.
Parece-nos acertado, pois, afirmar que não existe, sob o ângulo estritamente jurídico, um “verdadeiro titular” do Poder Constituinte. A esta questão o jurista não pode dar resposta, exatamente por não dispor de manancial normativo para tanto. Afirmar o contrário seria partir de um pressuposto valorativo, ideológico (e subjetivo, portanto), sempre sujeito a críticas e contrafações. Será esse Poder Constituinte, como fenômeno político, de fato exercido por quem dispuser, em dado momento e em certas circunstâncias, de força política suficiente para tanto, seja essa força de origem democrática ou não.
A afirmação não exclui, obviamente, o elogiável posicionamento político-ideológico de quem, sendo defensor dos princípios democráticos, entenda só ser desejável que seja o poder constituinte exercido, diretamente pelo povo ou com o indiscutível apoio deste.
Diversamente do originário, o poder de reforma constitucional se destina a modificar a Constituição em vigor, ora alterando o conteúdo de suas disposições, ora lhe acrescentando ou lhe suprimindo artigos, parágrafos, incisos ou alíneas, mas tudo sempre de acordo com as normas constitucionais disciplinadoras dessa atuação reformadora. Daí decorre ser ele um poder de natureza jurídica, posto que seu exercício se há de conformar às prescrições da própria Constituição a ser reformada . É o direito posto – em cujo ápice se encontra a norma constitucional – que se encarregará de estabelecer quando, como e por quem essa relevante tarefa deve ser desempenhada, impondo-lhe limites e gizamentos específicos.
Em alguns países restou adotada a técnica de periodicamente também promover-se uma revisão completa no Texto Supremo, de modo a mantê-lo sempre adaptado às novas realidades. Se, por um lado, essa providência se revela, sob certo ângulo, inovadora e oportuna, de outro carrega consigo o risco de manter viva, indefinidamente, a “chama” constituinte originária. Com isto jamais se atingiria, mormente em países ainda sem solidez institucional, a almejada segurança jurídica, fruto esta da permanência de uma dada ordem constitucional. A cada cinco anos — digamos fosse esse o período de tempo para proceder-se à revisão — não seria de surpreender se os exercentes desse “poder revisional” desejassem, à socapa ou escancaradamente, elaborar uma nova Constituição, não se contentando em “modernizar” a já existente. Até porque, de hábito, o quorum de aprovação das “emendas revisionais” geralmente é menor do que os ditados para as emendas “reformadoras” .
Isto configuraria, enfim, segundo Vilanova (citando Kelsen) uma verdadeira revolução, a importar a “… ruptura da continuidade constitucional, no instituir-se Constituição nova por procedimento não previsto pelas normas constitucionais de mutação constitucional. Se assim, tomado ao pé da letra, uma Constituição que preveja a mutação total (reforma chamada total não é reforma: é substituição), como a francesa de 1848 ou a suíça (art. 118 – ‘La Constitution fédéral peut être revisée en tout temps, totalment ou partiellement’), permite, sem interrupção da continuidade normativo-constitucional, passar de uma Constituição monárquica para uma republicana, de uma Constituição democrática para uma autocrática e vice-versa” .
Deve restar fixada, portanto, a noção de que o exercício do poder reformador (assim como o do revisional, onde ele exista) não é nem pode ser incondicionado, insubmisso à Constituição. Está ele, assim, a meio caminho do Direito Positivo, e não em sua linha de largada.
Estas reflexões, feitas com a pequenez própria do autor, são agora “ressuscitadas”, com o propósito de instigar os iluminados seres pensantes de hoje, diante da mixórdia constitucional experimentada. O ilustre ex-Ministro e ex-Deputado Aldo Rebelo disse bem: o Brasil parece ter onze Constituições ambulantes! O que pobremente ensinei, por quarenta anos, esboroou-se… coitados dos meus alunos.
Valmir Pontes Filho é advogado e professor