“Inquérito foi encerrado, mas seria bom reunir mais provas. Delação e ‘convicção’ não são suficientes. Leia a íntegra da decisão do STF e relatório da PF”, aponta o jornalista Joaquim de Carvalho. Confira:
A decisão de Alexandre de Moraes sobre a prisão preventiva dos irmãos Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa revela uma rede criminosa intrincada que envolve até a infiltração de uma pessoa nas fileiras do PSOL.
Trata-se de Laerte Silva de Lima, morador de Rio das Pedras, preso em 2020 numa investigação sobre o Escritório do Crime. Na época, não se vinculou a prisão de Laerte ao caso Marielle.
O homem foi apontado como importante na hierarquia do grupo, que tinha como líder o Capitão Adriano da Nóbrega, de notórias ligações com a família Bolsonaro.
Flávio manteve em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a esposa e a mãe do miliciano. Bolsonaro defendeu o Capitão Adriano na tribuna da Câmara dos Deputados, e o próprio Flávio o homenageou no parlamento fluminense.
Na decisão que autoriza a prisão dos três e determina outras medidas cautelares contra envolvidos no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, Moraes transcreve a parte do relatório da Polícia Federal em que Laerte é citado.
“Os Irmãos BRAZÃO infiltraram o nacional LAERTE SILVA DE LIMA nas fileiras do PSOL para levantamento interno de informações, o que resultou na indicação de que Marielle pediu para a população não aderir a novos loteamentos situados em áreas de milícias”, escreveu.
Marielle já tinha se oposto a Chiquinho Brazão na votação de um projeto de lei na Câmara Municipal do Rio de Janeiro que tratava de uso e ocupação do solo.
“Esse cenário recrudesceu justamente no segundo semestre de 2017, atribuído pelo colaborador como sendo a origem do planejamento da execução ora investigada, ocasião na qual ressaltamos a descontrolada reação de CHIQUINHO BRAZÃO à atuação de Marielle na apertada votação do PLC n.º 174/2016”, diz o relatório da PF, transcrito por Moraes.
A proposta, apresentada pelo então prefeito, Marcelo Crivella, foi aprovada por 28 votos a 19, e permitia, mediante o pagamento de taxas, aumentar prédios e transformar os exclusivamente residenciais em mistos, com comércio.
O Ministério Público era contrário à aprovação do projeto, bem como urbanistas, e Marielle se tornou uma das vozes mais ativas contra a matéria.
A própria Polícia Federal, no entanto, ressalva que pode ter havido outras motivações para a família Brazão encomendar a morte de Marielle.
“Neste contexto, como ressaltado em tópico próprio, torna- se necessário considerarmos a extensão do entendimento do colaborador em relação à motivação, especialmente porque esta se baseia em informações dispersas provenientes de alegados comentários de DOMINGOS BRAZÃO durante as negociações para a prática do homicídio. Dessa forma, as afirmações podem abranger apenas uma parte de um contexto mais intrincado e desconhecido pelo algoz da Vereadora”, narra a Polícia Federal.
A PF informa ainda que a recompensa dos executores seria a promessa de que teriam o controle de uma área que seria ocupada pela milícia, a da Praça Seca, com apoio da família Brazão. Como prova, não é forte.
“Já no que concerne aos executores e membros da camada rasteira da horda criminosa, a torpeza de suas condutas decorre da promessa de recompensa idealizada pelos Irmãos BRAZÃO e prontamente aceita por EDMILSON MACALÉ e RONNIE LESSA, qual seja: a implementação e o comando de um grupo paramilitar em uma grande extensão de terras vinculada à Família BRAZÃO, nas adjacências da Estrada Comandante Luís Souto, no bairro da Praça Seca.”
Segundo a investigação, o sargento da PM reformado Edmilson Macalé foi o elo entre o deputado federal Chiquinho Brazão e Ronnie Lessa, cuja delação é a base do pedido da PF para as prisões.
Ele foi morto a tiros em 2021, quando voltava para casa a pé, carregando o que parecia ser uma gaiola de passarinho, em um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro. O assassinato foi gravado por câmeras de segurança.
A revelação mais surpreendente do inquérito, além da infiltração de um miliciano no PSOL, é a participação do delegado Rivaldo Barbosa na preparação e execução do crime, não só no acobertamento.
Segundo a delação de Ronnie Lessa, ele sabia que a família Brazão tinha escolhido Marielle como alvo no segundo semestre de 2017.
Na época, Rivaldo era diretor da Divisão de Homicídios, e orientou os comparsas a não cometerem o crime na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pois ficaria caracterizada a natureza política da execução e o caso seria transferido para a Polícia Federal, e ele não teria o controle da investigação.
Rivaldo foi nomeado chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro pelo general Braga Netto, interventor da segurança pública no Estado, na véspera do crime. Doze horas depois, Rivaldo nomeou para chefiar a Delegacia de Homicídios da capital fluminense Giniton Lages, de sua extrema confiança.
Duas promotoras que investigavam o crime acabaram se afastando alguns anos depois, sob alegação de que estavam sendo pressionadas. O governo Bolsonaro, em que Braga Netto era forte, nunca se empenhou para federalizar o caso, que só foi para a alçada da Polícia Federal no governo Lula.
As prisões e as revelações que ocorreram neste domingo demonstram que houve avanço, mas o caso não está encerrado. Até porque as conclusões da PF se baseiam, em grande parte, na delação de Ronnie Lessa, e como prova não serve. No relatório do inquérito, a PF usa o termo “convicção” para justificar por que não tem dúvida de que os mandantes são Domingos e Chiquinho Brazão.
“Os indícios de autoria mediata que recaem sobre os irmãos DOMINGOS INÁCIO BRAZÃO e JOSÉ FRANCISCO INÁCIO BRAZÃO são eloquentes. Com base na dinâmica narrada pelo executor RONNIE LESSA e pelos elementos de convicção angariados durante a fase de corroboração de suas declarações, extrai-se que os Irmãos contrataram dois serviços para a consecução do homicídio da então Vereadora Marielle Franco: a) a execução em si, por meio de EDMILSON MACALÉ e RONNIE LESSA; b) a garantia prévia da impunidade junto à organização criminosa instalada na Divisão de Homicídios da PCERJ, comandada por RIVALDO BARBOSA”, relataram os policiais.
Tecnicamente, o inquérito pode ser encerrado para a análise da Procuradoria Geral da República, que deve oficiar no caso em razão de Chiquinho e Domingos terem foro privilegiado.
Mas será prudente que as investigações de forma geral não se encerrem. Ronnie Lessa pode ter apresentado apenas a ponto do novelo. É preciso saber onde ele vai dar.
Joaquim de Carvalho é colunista do 247, foi subeditor de Veja e repórter do Jornal Nacional, entre outros veículos. Ganhou os prêmios Esso (equipe, 1992), Vladimir Herzog e Jornalismo Social (revista Imprensa).
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