“O que o maior ataque hacker do país revela sobre nós” – Por Mauro Oliveira

Mauro Oliveira é PhD em Informática por Sorbonne. Foto: Arquivo Pessoal

“É preciso, portanto, fortalecer as iniciativas locais que já vêm reinventando saberes digitais, testando linguagens emergentes e promovendo inclusão crítica nos territórios onde a inovação pulsa com sotaque próprio”, aponta o professor Mauro Oliveira, professor do IFCE e PhD em informática por Sorbonne University.

Confira:

(Dedicado ao economista Celio Fernando, importante colaborador do Pirambu Innovation)

Agosto de 2005. Um túnel cavado por debaixo das barbas do Banco Central de Fortaleza leva a bufunfa de R$ 165 milhões, em espécie. Um assalto hollywoodiano que virou filme.

Julho de 2025. Nada de túnel, nada de picareta — agora o assalto é na nuvem, com login e senha vendidas por funcionário “meliante” e Pix pra tudo quanto é lado. A tecnologia saiu do chão, literalmente, e foi pro front-end.

A vítima da vez? Não foi o cofre da Rodrigues Júnior esquina com Duque de Caxias, mas as contas de reserva de fintechs que usavam os serviços da empresa C&M Software, aquela que fazia a ponte entre o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e as startups do dinheiro digital. Estimativas especulam um rombo de R$ 400 milhões a R$ 1 Bilhão. Assim mesmo: com “B” de Big data, Buraco, BaaS (Banking as a Service) e Brasil.

Marcos Zanini, especialista em segurança digital e um dos responsáveis pela implementação do Pix, reconhece que as fintechs — empresas que atuam nos mercados financeiros com uso intensivo de tecnologia — necessitam de regulamentação específica, sobretudo no que diz respeito a mecanismos de segurança cibernética. Afinal, o ataque expôs uma galera que andava sambando com salto fino em cima do barril de pólvora digital.

Segundo a Asper, uma das primeiras empresas de cibersegurança a emitir parecer técnico sobre o caso, o problema não estava no Pix, nem no BC, mas sim em provedores terceirizados, responsáveis por atuar como gateways ou integradores do SPB para fintechs. A C&M Software, nesse contexto, é apontada como o elo vulnerável do ataque.

Um dos aspectos mais críticos identificados foi o fato de que as credenciais de acesso de diversos clientes estavam concentradas em uma mesma área interna da C&M Software — uma espécie de um password corporativo para trocentas fintechs, tudo guardado no mesmo lugar. Aí, alguém resolveu vender o combo: login, senha… e o caos.

Esse tipo de vazamento, ocorrido em um ambiente com tal nível de sensibilidade, escancara uma falha estrutural inaceitável dentro de modelos baseados em BaaS — onde o mínimo esperado seria a segmentação segura de credenciais, rastreamento de acessos e protocolos de resposta em tempo real atualizados. Não foi o caso, diz a Asper.

Explicando melhor: a detecção da fraude só ocorreu após a conversão dos valores em criptomoedas, Pix na execução das transações fraudulentas. Não havia, como relata a Asper, naquele momento, limites automáticos que disparassem alertas, o que facilitou saques em massa antes de qualquer resposta sistêmica.

Detalhe poético: quem alertou o BC não foi um firewall, nem o COAF, mas a SmartPay, uma operadora de criptomoedas. Ironia das boas: foi o mundo cripto, sempre tratado como vilão, que salvou o dia da república bancária. No Brasil, até a distopia tem reviravolta.

Ah, e a BMP, aquela fintech que saiu mais chamuscada do que as outras? No modelo adotado por ela e por outros clientes da C&M, há uma concentração de recursos em uma única conta operacional, o que, segundo especialistas, dificulta o rastreamento da origem e da real titularidade dos valores em casos de fraude ou ataque (numa espécie de “engenharia reversa contábil”) que pode abrir brechas para lavagem de dinheiro, drogas, rachadinhas e outras malandragens que assolam o pais.

Considerando que muitas dessas fintechs, embora legais, operam fora da regulação direta do Banco Central, a fiscalização efetiva de cerca de 2.000 fintechs em operação no Brasil se torna um desafio real.

Este episódio, o maior ataque hacker da história do país, revela mais do que brechas tecnológicas — expõe também o descompasso entre a transformação digital e o letramento digital da população. O primeiro impulso coletivo (meu inclusive … rsrsr) diante da notícia foi saber se as contas bancárias foram afetadas. Resolvida a questão do bolso — esse órgão sensível do homo sapiens — a atenção da massa rapidamente se deslocou para a Copa Mundial de Clubes, essa aí onde o Fluminense está prestes a erguer a “Taça Jules Rimet” (É o NOVO, Guajará).

Enquanto isso, a importância do Letramento Digital segue ausente das cabeças de nosso povo … e das agendas de nossos governantes. Questões como a gravidade de ataques cibernéticos, o papel dos certificados digitais, os impactos da IA no desemprego em massa, a colonização digital (a grana que você paga mensalmente ao Netflix, Google Drive, Office e o escambau tecnológico das big-techs) e a perpetuação de um modelo econômico baseado em commodities que só aumenta a desigualdade social … tudo isso “ausente das cabeças de nosso povo … e das agendas de nossos governantes”.

Quantos de nós, professores, empresários, juízes, profissionais em geral estão cientes das consequências do estrago que o roubo de um certificado digital (“uma assinatura com firma reconhecida em cartório”) é capaz … digam aí? Quantas fraudes eletrônicas acontecem com o cidadão comum diariamente por falta de um “Letramento Digital”? Existe coisa mais “besta” do que o sofrimento que a indústria das BETs tem trazido à população brasileira?

A real é que estamos desarmados num tiroteio de bytes. Sem política pública séria de IA, sem estratégia de cibersegurança integrada e com parte do Congresso ainda achando que “metaverso” é nome de uma nova igreja evangélica … isenta de impostos, que tal?

O Brasil corre o risco de ser espectador passivo de uma revolução digital que já acontece — e que, sem iniciativa estratégicas, poderá se consolidar contra os interesses nacionais.

A urgência imposta pela era digital exige o abandono da apatia e o enfrentamento direto dos desafios contemporâneos. Políticas públicas estruturadas em torno da inteligência artificial e da inclusão digital precisam ser priorizadas. Enquanto o Piauí já insere IA nas suas pautas de governo, tem estado por aí que ainda acha que o problema é o sinal do wi-fi.

A ausência de uma estratégia nacional pode nos excluir dos fluxos globais de inovação — ou pior: nos deixar à mercê de decisões automatizadas por algoritmos treinados em contextos alheios à nossa cultura, aos nossos dilemas e às nossas urgências. Ainda há tempo de entrar no jogo com voz ativa, ocupar os espaços e garantir que essa revolução digital não aconteça sem o Brasil… e muito menos contra ele.

O maior ataque hacker da história do país não expõe apenas fragilidades técnicas, mas revela o espelho trincado de uma sociedade que ainda trata o digital como acessório, e não como estrutura. A transição do arrombamento físico para o vazamento de credenciais não nos livrou da ingenuidade — só a trocou de roupa.

É preciso, portanto, fortalecer as iniciativas locais que já vêm reinventando saberes digitais, testando linguagens emergentes e promovendo inclusão crítica nos territórios onde a inovação pulsa com sotaque próprio. O chamado ao Letramento Digital já ecoa — vibrante, necessário e insubmisso.

Que venha o Letramento Digital: com sotaque, com ginga, com prompt, com código… e com a criatividade tropical — porque sem ela, o Brasil continuará tropeçando entre o cofre e o código, e invariavelmente pagando a conta.

Talvez seja esse o tal “Outro Brasil que Vem Aí”, anunciado por Gilberto Freyre lá em 1926:
“Eu ouço as vozes / eu vejo as cores / eu sinto os passos / de outro Brasil que vem aí / mais tropical / mais fraternal / mais brasileiro.”

Que esse Brasil chegue logo, meu “Deus do Céu”, não só mais tropical, mas também mais digital, mais crítico, mais nosso.

*Mauro Oliveira

PhD em informática (Sorbonne University) e ex-secretário de Telecomunicações do Ministério das Comunicações.

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