“Quando a morte vira entretenimento, a sociedade expõe suas próprias feridas”, aponta a jornalista Sara York
Confira:
Nos últimos dias, dois vídeos circularam intensamente: um comentário de um teórico dizendo que o problema não é apenas Netanyahu, mas a sociedade israelense que naturaliza a desigualdade entre vidas; e, aqui no Brasil, o vídeo de um assaltante atropelado durante a fuga, seguido por uma comemoração ruidosa, quase festiva, nas redes.
À primeira vista, esses episódios parecem distantes, eu mesma senti a relação, mas demorei para ligá-los. Eles revelam a mesma engrenagem: a facilidade com que transformamos a morte do outro em justificativa, espetáculo ou vingança simbólica.
Como humana trans, eu conheço bem o lugar onde certas vidas são tratadas como descartáveis. É o que acontece quando a sociedade estabelece, silenciosamente, que algumas vidas importam mais do que outras — e que a eliminação de determinados corpos pode ser celebrada como se fosse um acerto de contas — Berenice Bento fala sobre isso em seus artigos.
O que está em jogo quando a violência vira espetáculo?
A reação ao atropelamento do assaltante não é apenas indignação ou medo. O que se vê nas redes é euforia, um certo prazer social em ver “alguém que errou” sendo punido de maneira definitiva; é o retorno do pai de arara! Público e espetacular, exemplar, pensando Michel Foucault em seus escritos. A psicanálise tem um nome para isso: gozo — um tipo de satisfação que nasce não da justiça, mas do poder de ver o outro destruído.
Essa comemoração revela algo mais profundo:
quando uma sociedade não consegue lidar com seus conflitos de forma simbólica, ela age de forma impulsiva — e a morte do outro vira a solução imaginária para problemas reais.
A mesma lógica aparece no discurso que diz que o problema de Israel não é apenas um líder político, mas uma cultura inteira que aprendeu a hierarquizar vidas. Quando a morte de um grupo se torna aceitável, defendida ou comemorada, já não estamos falando de política, mas de um pacto social que falhou.
O perigo da naturalização
No Brasil, essa lógica aparece no comentário “foi tarde”, “antes ele do que eu”, ou no simples ato de compartilhar o vídeo com uma risada. Aos poucos, vamos perdendo a capacidade de nos afetar pela violência que circula. E, quanto mais natural é a morte do outro, mais fácil é normalizar a eliminação de grupos inteiros — pobres, pretos, trans, periféricos, nós — gente que me lê!
É assim que sociedades se tornam mais violentas sem perceber. Não é um lugar, é a estrutura!
E é assim que vidas são empurradas para a categoria do descartável.
E por que isso importa tanto para quem analisa a psique humana?
Porque a psicanálise não pergunta quem merece morrer.
A pergunta é: que sociedade é essa que precisa comemorar uma morte para se sentir protegida?
Uma sociedade que vibra diante da eliminação de alguém — mesmo alguém que cometeu um crime — é uma sociedade que perdeu a capacidade de simbolizar, de elaborar, de reconhecer a complexidade humana.
E, quando essa capacidade se perde, o laço social se rompe.
O outro deixa de ser um sujeito e vira um inimigo.
E a morte, que deveria ser sempre trágica, vira entretenimento.
No fim das contas, o que se comemora?
Não é a nossa segurança.
Não é a justiça social!
O que se comemora é a fantasia de que eliminar o outro resolve aquilo que nós, como sociedade, não conseguimos encarar: desigualdades, medo, abandono, raiva, ausência de políticas públicas.
Celebrar a morte de alguém não nos torna mais seguros — apenas revela o quanto estamos fragilizados como coletivo. Talvez a pergunta mais urgente seja:
que tipo de sociedade queremos ser? Uma que celebra a violência? Ou uma que se responsabiliza pelos seus conflitos sem transformar a morte em espetáculo?
Eu existo em uma delas, mas vivo em ambas…
Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247