Com o título “O tempo que atravessa o coração”, eis artigo de Suzete Nocrato, jornalista e mestra em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. “Tia Zuleide é uma mulher que o tempo não desbotou, apenas amadureceu como fruta boa guardada na sombra da vida”, expõe a articulista, num texto em clima de homenagem.
Confira:
Há memórias que cheiram a casa antiga, o café coado devagar, as páginas amareladas por mãos firmes e ternas. Foi nesse perfume do tempo que, no último fim de semana, participei da celebração dos 90 anos de uma irmã de minha mãe. Tia Zuleide é uma mulher que o tempo não desbotou, apenas amadureceu como fruta boa guardada na sombra da vida.
Naquela festa, havia algo sagrado: cinco irmãos reunidos, com idades entre 79 e 94 anos, cada um com o corpo arqueado e o olhar brilhante de quem carrega décadas nas costas, mas ainda dança dentro da própria lembrança. Faltava a mais velha, que partiu para a pátria espiritual no ano passado, aos 91. Mas sua ausência era presença pairada no ar, leve como uma prece.
Quando criança, eu via tia Zuleide como quem vê um cometa: rara e fascinante. Ela era minha referência, o retrato de quem não se deixa domesticar pelo destino, quase um ato de revolução.
Diretora do único grupo escolar de Saboeiro, impunha respeito. Os alunos a temiam, e muitos a odiavam, sem perceber que por trás daquela rigidez morava um coração que os ensinava a se equilibrar nas primeiras letras do alfabeto e da disciplina. Aliás, foi ela quem me ensinou a ler, e, talvez por isso, tudo o que escrevo hoje nasce um pouco de sua voz.
Recordo suas manhãs apressadas, o gesto meticuloso observando as filas das crianças nas portas das salas de aula. Todas as quartas-feiras, perfilava os estudantes em frente a bandeira para cantar o Hino Nacional, uma determinação do regime de exceção. Tia Zuleide era firme, mas havia nela um quê de ternura disfarçada, um modo de ser que misturava ferro e flor.
Depois de tantos anos dedicados à escola e à família, ousou mais uma vez. Durante três anos, nas férias escolares de meio e final do ano, estudava pedagogia em Fortaleza. Período de ausência na casa, de cadernos abertos sob a luz cansada das noites, de roupas lavadas e passadas entre uma lição e outra.
O marido não compreendia. A mulher que ele conhecia já não cabia na rotina. Mas ela, com a serenidade das águas profundas, respondia que a graduação era a garantia de um futuro melhor. Estava certa. O diploma lhe trouxe independência e hoje colhe o fruto da coragem que plantou no sertão.
Vê-la assim, lúcida, sorridente, rodeada por irmãos, filho, enteados, netos, bisnetos, sobrinhos e memórias, é como assistir a uma flor antiga desabrochando de novo, desafiando o tempo.
Tia Zuleide é o retrato das mulheres que vieram antes de nós, que enfrentaram a vida sem alarde, que abriram caminhos com as próprias mãos. E quando penso nela, penso também em todas as que são firmes, ventosas, inteiras. Mulheres que, mesmo quando o mundo diz “não”, respondem com o gesto sereno de quem sabe o valor de um sonho.
E assim termino este texto com a alma em festa por ela, por sua história, e por todas as Zuleides que o Brasil esconde nas casas e salas de aula.
*Suzete Nocrato
Jornalista e Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.