Com o título “A Oportunidade da Inclusividade no Ceará da Inovação”, eis artigo assinado por Samya Angelim, presidente da Associação Cearense de Inovação (ACINOVA) e Célio Fernando B. Melo, vice-presidente da Academia Cearense de Economia (ACE). “Os rankings nacionais, como os da Confederação Nacional da Indústria (CNI), já posicionam o Ceará em destaque na agenda de inovação. No entanto, os indicadores, por mais importantes que sejam, não podem ser um fim em si mesmos”, expõem os articulistas.Software para finanças
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O Ceará consolida-se, na contemporaneidade, como um verdeiro e pioneiro território de inovação e protagonismo científico-tecnológico. O estado se posiciona como epicentro de transformação no Nordeste brasileiro, materializando aquilo que Clayton Christensen (1997) denominou “inovação disruptiva” – não meramente a melhoria incremental do existente, mas a capacidade de redesenhar mercados, processos e possibilidades. Concomitantemente, vivencia de forma concreta a “destruição criativa”; de Joseph Schumpeter (1942), movimento no qual antigos modelos cedem espaço a novas formas de produzir riqueza, conhecimento e justiça social. O povo cearense, por
sua história de resiliência, criatividade e persistência, constitui-se como protagonista inconteste desse processo transformativo.
É fundamental compreender, todavia, que inovação não se reduz à tecnologia. Trata-se, prioritariamente, da capacidade de adaptação responsável a novas realidades, do alinhamento entre tecnologias, processos e instituições em prol de um projeto ético de sociedade. A inovação deve estar indissoluvelmente conectada à sustentabilidade, à justiça social e ao compromisso intergeracional. Sem essa fundamentação, qualquer avanço tecnológico incorre no risco de se revelar incompleto ou, mais gravemente, de aprofundar desigualdades e criar novas assimetrias sociais. Nessa perspectiva, a inovação cearense não pode ser lida exclusivamente por indicadores econômicos ou rankings internacionais, mas sobretudo por sua capacidade de transformar vidas, reduzir desigualdades e interiorizar oportunidades para o conjunto da população.
O ecossistema de inovação do Ceará caracteriza-se por sua diversidade e distribuição territorial. Não se circunscreve à Região Metropolitana de Fortaleza, embora esta concentre importantes “nós”; estratégicos da rede de conhecimento, com instituições como a Universidade Federal do Ceará (UFC), a Universidade Estadual do Ceará (UECE), o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) em Fortaleza, a Universidade de Fortaleza (Unifor) e a Universidade Federal da Integração Luso-Afro-Brasileira (UNILAB). Como assevera Manuel Castells (2003) em A Galáxia da Internet a concentração de capital intelectual e infraestrutura tecnológica constitui pólos capazes de dialogar com redes globais de inovação. Fortaleza já se apresenta como um desses polos de reverberação internacional.
Ao mesmo tempo, o grande diferencial cearense está na interiorização desse movimento. No Cariri, no sul do estado, a Universidade Federal do Cariri (UFCA) e o IFCE em Juazeiro do Norte protagonizam um processo vigoroso de desenvolvimento tecnológico regional, em sintonia com a visão de desenvolvimento territorial sustentável de Ignacy Sachs (2004). Energias renováveis, biotecnologia e economia criativa emergem ali como eixos estruturantes, num ambiente que articula tradição cultural e ciência de ponta. No Litoral Oeste, com destaque para Sobral, a Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e o IFCE local assumem papel de agentes de transformação regional, investindo na formação de capital humano e no fortalecimento de arranjos produtivos locais.
Nos Sertões Centrais, em municípios como Quixadá e Crateús, a presença do IFCE e da UFC ilustra, na prática, o que Mariana Mazzucato (2014) descreve em “O Estado Empreendedor”, o poder público atuando como indutor corajoso da inovação, liderando processos, assumindo riscos e abrindo caminhos para o investimento privado. Já nos Vales do Jaguaribe e Banabuiú, instituições de ensino e pesquisa desenvolvem soluções em agricultura sustentável, gestão de recursos hídricos e tecnologias adaptadas ao semiárido, demonstrando que essa região, tantas vezes associada apenas à escassez, pode se tornar um laboratório de referência em convivência inteligente com o clima e uso racional da água.
Esse mosaico de iniciativas é sustentado por um modelo de governança que evolui da tradicional “tríplice hélice”, academia, governo e empresas, consagrada por Henry Etzkowitz (2009), para uma visão de penta-hélice, incorporando de maneira mais explícita a sociedade civil organizada e o ecossistema de startups. Essa ampliação é importante porque reconhece que a inovação não é tarefa de um único setor. Ela depende de políticas públicas consistentes, de universidades atuantes, de empresas dispostas a investir em risco tecnológico, de organizações sociais que expressam demandas reais dos territórios e de empreendedores capazes de transformar ideias em soluções escaláveis. É dessa interação ampliada que surgem legitimidade, participação social e capacidade de resposta a desafios complexos.
Um marco simbólico e prático dessa construção coletiva é a obra organizada por Célio Melo et alii, “Inovação, Tecnologia, Ciência e Sustentabilidade: Transformação Digital – O Ceará Interconectado”, realizada no âmbito do movimento Iracema Digital. Mais do que um livro, trata-se de um compêndio que reúne mais de 80 autores e sistematiza 120 propostas de políticas públicas em 16 diferentes áreas, todas convergindo para a agenda de inovação e sustentabilidade no Estado do Ceará . Em linha com o que Nonaka e Takeuchi (1995) definem em “The Knowledge-Creating Company”, o trabalho exemplifica como a criação de conhecimento organizacional nasce da interação social e da conversão entre conhecimento tácito, aquele que está na experiência de pessoas, gestores e comunidades, e conhecimento explícito, vertido em diagnósticos, planos e estratégias. Ao mesmo tempo, o livro dialoga com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e com a agenda global de inovação aberta, conceito formulado por Henry Chesbrough (2003), no qual fronteiras rígidas entre organizações dão lugar a fluxos mais livres de ideias, tecnologias e colaborações. O Iracema Digital, como articulador dessa iniciativa, reforça o papel das redes colaborativas na consolidação do Ceará como um laboratório vivo de transformação digital.
A força da inovação cearense também se manifesta em projetos estruturantes que transcendem as fronteiras do estado. O Cinturão Digital do Ceará é um exemplo emblemático. Ao expandir a rede de fibra óptica e democratizar o acesso à internet em alta velocidade, o estado materializa a visão de Nicholas Negroponte (1995) em “A Vida Digital”, para quem a conectividade é elemento central da nova era
informacional. Como analisam Van Dijk (2005) e Warschauer (2006), a inclusão digital torna-se condição básica para reduzir desigualdades
sociais e ampliar oportunidades educacionais, econômicas e cívicas. No Ceará, o Cinturão Digital deixa de ser apenas um projeto de infraestrutura tecnológica para se afirmar como política pública de cidadania.
No campo da transição energética, o Ceará também começa a ganhar projeção internacional com a agenda do Hidrogênio Verde (H2V). Em consonância com as análises de Jeremy Rifkin (2002) em “A Economia do Hidrogênio” e com relatórios recentes da Agência Internacional de Energia (IEA, 2021), o H2V surge como peça-chave para descarbonizar setores intensivos em energia, diversificar matrizes energéticas e fortalecer a segurança energética global. Graças à combinação de alta incidência solar, potencial eólico onshore e offshore, infraestrutura portuária consolidada no Pecém e ecossistema acadêmico em expansão, o Ceará reúne condições ímpares para se tornar um hub de produção e exportação de Hidrogênio Verde. As oportunidades incluem desde a geração de empregos qualificados até a atração de investimentos estrangeiros, passando pelo fortalecimento de centros de pesquisa e pelo estímulo a parcerias público-privadas em tecnologia de ponta. Também aqui, a integração entre economia do mar e economia do ar se evidencia, rotas marítimas e aéreas, cadeias globais de suprimento e monitoramento climático compõem um sistema no qual ar e mar se entrelaçam em interdependência.
Por trás de cada um desses avanços, há um componente muitas vezes negligenciado no debate sobre inovação, o imaginário. Júlio Verne, em sua literatura visionária, mostrou que o futuro nasce da coragem de sonhar o aparentemente impossível. Hoje, aquilo que por muito tempo pareceu ficção científica, redes globais de dados, inteligência artificial, energias limpas, cidades inteligentes, aviões mais eficientes, exploração sustentável dos oceanos, integra o cotidiano de milhões de pessoas. A questão central, para o Ceará e para o mundo, é que tipo de sociedade se quer construir com essas ferramentas. A resposta passa pela educação, pela ciência e pela cultura. É preciso formar cidadãos capazes de criar e usar tecnologia com senso crítico, responsabilidade e sensibilidade social. É necessário valorizar a cultura, as tradições e as artes como espaços de memória e inovação social, porque não há projeto de futuro sólido que não esteja enraizado em identidades e experiências concretas.
Os rankings nacionais, como os da Confederação Nacional da Indústria (CNI), já posicionam o Ceará em destaque na agenda de inovação. No entanto, os indicadores, por mais importantes que sejam, não podem ser um fim em si mesmos. O verdadeiro desafio é transformar esse reconhecimento em oportunidades concretas para as juventudes das 14 macrorregiões do estado, em empregos qualificados, em novas cadeias produtivas e em fortalecimento das empresas locais como vitrines de tecnologias e modelos de negócio inovadores. Trata-se de garantir que o setor público atue como parceiro e indutor, que a academia produza pesquisa de ponta conectada às demandas reais da sociedade, que a sociedade civil tenha voz ativa na formulação de agendas e que as startups encontrem um ambiente fértil para nascer, crescer e competir em escala global.
O Ceará vive, portanto, um momento histórico. Entre a destruição criativa de Schumpeter e a inovação disruptiva de Christensen, a grande tarefa é assegurar que essa transformação não produza novas formas de exclusão, mas inaugure um ciclo de renovação mais justo, sustentável e democrático. Ser um território de inovação, no caso cearense, significa conectar conhecimento, pessoas e regiões, articular portos, rodovias, ferrovias e aeroportos com fluxos de ciência, tecnologia e cultura, construir pontes entre a economia do mar e a economia do ar como dimensões complementares de uma mesma economia azul, interiorizar oportunidades, reconhecendo e potencializando as vocações de cada região, assumir, por fim, um compromisso continuado com ética, sustentabilidade e inclusão. Se conseguir manter esse rumo, o Ceará tem todas as condições de se afirmar, cada vez mais, como um polo de inovação responsável e de prosperidade compartilhada, um território de futuro que coloca a ciência e a tecnologia a serviço da dignidade humana e do bem viver coletivo.
*Samya Angelim, presidente da Associação Cearense de Inovação (ACINOVA) e
*Célio Fernando B. Melo, vice-presidente da Academia Cearense de Economia (ACE).
Referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
CHESBROUGH, Henry. Open innovation: the new imperative for creating and profiting from technology. Boston: Harvard Business School Press, 2003.
CHRISTENSEN, Clayton. The innovator's dilemma: when new technologies cause great firms to fail. Boston: Harvard Business School Press, 1997.
ETZKOWITZ, Henry. The triple helix: university-industry-government innovation in action. New York: Routledge, 2009.
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (IEA). Global hydrogen review 2021. Paris: IEA, 2021.
MAZZUCATO, Mariana. O Estado Empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2014.
MELO, Célio F. B. (org.). Inovação, tecnologia, ciência e sustentabilidade: transformação digital – o Ceará interconectado: Iracema Digital. Fortaleza: LCR, 2025.
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NONAKA, Ikujiro; TAKEUCHI, Hirotaka. The knowledge-creating company: how Japanese companies create the dynamics of innovation. New York: Oxford University Press, 1995.
PORTER, Michael. The competitive advantage of nations. New York: Free Press, 1990.