“O raciocínio que acompanho cuidadosamente, estabelecendo as minhas conexões com a sua tese. Fico em dúvida se são as saudades de casa que me turvam a razão”, aponta a jornalista e publicitária Tuty Osório.
Confira:
Viriato é de uma das equipes de pesquisa, um dos melhores. Falante, sociável, argumentativo. Bem sucedido. No sentido de empenho pelas tarefas que assume. Seu trabalho exige repertório, carisma, convencimento, convicção. Ficou aceso quando lhe perguntei se conhecia a origem de seu nome. Não sabia e gostou bastante. Nome de líder, o comandante dos lusitanos na resistência à invasão romana, em torno do último século, antes de Cristo.
Nem sempre tenho tempo para muitas conversas durante um projeto. Tento. Gosto de falar e de ouvir. É poderosa a energia das boas trocas. Conto a Viriato que além de seu ancestral houve Vitiza, o penúltimo rei, nos anos 700 da era cristã. Líder dos Visigodos, dominantes na Península Ibérica até à fundação do Condado que virou Portugal pela espada de Afonso Henriques. Meu amigo curte histórias. Uma tarde pergunta-me sobre Ícaro e as asas coladas com a cera que derreteu ao aproximar-se demasiado do sol.
-Foi derrubado pelo excesso de confiança – interpreta Viriato. – O sol é muito positivo de uma distância segura. Perto demais queima, igual a remédio que vira veneno na dose errada – completa, sobre o sonho frustrado. – Sou mais o Dumbo – acrescenta, supreendentemente. – O Dumbo? – pergunto eu, espantada. – Como assim? – insisto. A prosa avança e não creio que estou debatendo a respeito de um desenho animado.
Viriato prossegue. Defende que Dumbo não voou por artifícios, elevou- se aos céus pela arte de suas enormes orelhas. Não usou colas, nem asas outras que não a extensão de seu próprio corpo. O filhote de elefante, famoso por gerações, há mais de 50 anos, é como um avião que vence a gravidade por ciência. Sendo que o orelhudo fofo é elevado em sua rasante panorâmica pela mágica da imaginação. Com existência material pelos filmes, através dos tempos.
O que me abala não é a incrível naturalidade com que Viriato defende um personagem como se real fosse. Opondo-o a um outro que não passa de uma lenda. O que mexe comigo é a atenção com que eu o escuto. O raciocínio que acompanho cuidadosamente, estabelecendo as minhas conexões com a sua tese. Fico em dúvida se são as saudades de casa que me turvam a razão. Acredito que volto a mim, emergindo de um mergulho em lagoa densa, percebendo que não há nada de irracional na conversa.
Num mundo que normaliza atrocidades, nega contradições e destrói sem limites, o duelo moral entre Ícaro e Dumbo é perfeitamente razoável. Estranho seria se nunca tivéssemos prestado atenção em drama tão relevante. Afinal a sociedade virou líquida. O sólido desmancha no ar. E a leveza tornou-se insuportável.
Tuty Osório é jornalista, publicitária, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. Lançou em 2022, QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos); em 2023, MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA (10 crônicas, um conto e um ponto) e SÔNIA VALÉRIA A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho); todos em ebook, disponíveis, em breve, na PLATAFORMA FORA DE SÉRIE PERCURSOS CULTURAIS