Com o título “Os pobres de volta no orçamento. Mas e a frustração popular?*, eis artigo de Felipe Araújo, jornalista e advogado. “Lula já sabe: se escuta Gleise, pode passar uma marcha importante em seu governo, incluindo no orçamento a frustração popular (que se ergue mesmo em meio aos auxílios de praxe) e levando o país a um outro patamar de desenvolvimento, social e ambientalmente sustentáveis. Se escuta somente Haddad, recebe um abraço de afogado e fará afundar não apenas seu projeto de reeleição, mas a própria democracia brasileira”, expõe o articulista.
Confira:
Em geral, a crônica política e econômica dos grandes veículos de imprensa tem imposto ao Brasil um raciocínio segundo qual o governo Lula III vive uma cisão entre o que seria uma área “técnica”, formada pelas vozes da razão neoliberal, domesticadas pelo agendamento do mercado; e a área “ideológica”, uma turma “ruidosa”, ligadas aos setores “extremistas” do PT e outros partidos da esquerda aliada, que vive a causar “problemas” para o presidente. No imaginário vendido por esses analistas, o ministro Fernando Haddad, sóbrio, “bom negociador”, sensato, é a figura mais representativa da primeira; enquanto a presidente nacional do PT, deputada Gleise Hoffman, tratada sempre como uma figura excêntrica, deslocada da realidade, seria uma das vozes mais destacadas entre os “rebeldes”.
Desde a campanha, Lula vem repetindo que o pobre deve estar no orçamento e o rico, no imposto de renda. No governo, é fato, o presidente vem tentando (re)colocar a população mais vulnerável dentro das rubricas das políticas públicas, através de medidas compensatórias e auxílios os mais diversos (urgentes, mas não suficientes), e também vem tentando acabar com a farra da não-taxação do andar de cima. Sabemos que não é fácil, especialmente se considerarmos o Congresso majoritariamente patrimonialista e reacionário que Lula tem aos calcanhares. Ocorre que, nesse diapasão conciliador, falsamente “republicano”, o governo vai deixando muito pouco espaço nas diretrizes orçamentárias para a frustração popular, essa, sim, o grande resultado das políticas econômicas neoliberais e o principal motor do ressentimento com a democracia que tanto fortalece a extrema-direita.
Depois de 40 anos de experiência neoliberal pelo mundo, o retumbante fracasso da “ortodoxia” fiscal na promoção da prosperidade econômica criou um desastre em termos de desemprego e desalento social, fatores que foram engrossando um caldo de revanchismo que é hoje uma ameaça iminente à democracia. Refugiados agora no abrigo ideológico-eleitoral da extrema-direita, os neoliberais já sacaram o fracasso de seus próprios estatutos e agora tratam de inverter a responsabilidade pelo horror econômico em curso. Para isso, criam fantasmagorias (comunismo, ideologia de gênero, venezuelas etc) que, na falta de políticas econômicas e sociais consistentes e emancipadoras, ressoam entre as camadas médias e baixas da população jogando o povo contra as próprias forças populares.
Recentemente, o Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD), uma coletividade de economistas, acadêmicos e especialistas em economia e orçamento público, expressou apoio às declarações de Gleisi Hoffmann. Em particular, sobre a necessidade de expansão planejada dos gastos públicos no Brasil: Gleise defendeu priorização dos investimentos em obras e serviços públicos fundamentais e os analistas do IFFD ressaltaram que a gestão orçamentária deve ser uma ferramenta para alcançar metas econômicas como o pleno emprego, a estabilidade de preços e o desenvolvimento social justo e ambientalmente sustentável.
“Ressaltamos que regimes fiscais rígidos e que estabelecem limite máximo para o crescimento dos gastos, como o Teto de Gastos e o Novo Arcabouço Fiscal (NAF), são equivocados, porque impedem a necessária expansão de gastos quando há desemprego e baixa ocupação da capacidade instalada”, diz o texto do IFFD. “Além disso, são absolutamente ineficazes para os propósitos a que se destinam, dado que a contenção dos gastos públicos afeta negativamente a atividade econômica e a arrecadação, levando a déficits sucessivamente maiores. Por fim, desorganizam todo o processo de planejamento e execução do orçamento, tornando a ação do governo menos eficiente na lida com eventos emergenciais e mais suscetível a procedimentos não transparentes de distribuição de recursos orçamentários”.
O IFFD destacou também que a inadequação de regras fiscais meramente contábeis, apartadas das necessidades concretas do país, tem sido amplamente reconhecida até por órgãos que costumavam recomendá-las, como o FMI. “Regras fiscais equivocadas revertem o processo democrático porque balizam a ação do governo não pelas necessidades sociais a serem satisfeitas, mas por metas contábeis. Isso tem se mostrado economicamente contraproducente, por não permitir o pleno uso dos recursos humanos e materiais disponíveis; e politicamente perigoso, por frustrar as aspirações mais fundamentais do povo brasileiro”.
Lula já sabe: se escuta Gleise, pode passar uma marcha importante em seu governo, incluindo no orçamento a frustração popular (que se ergue mesmo em meio aos auxílios de praxe) e levando o país a um outro patamar de desenvolvimento, social e ambientalmente sustentáveis. Se escuta somente Haddad, recebe um abraço de afogado e fará afundar não apenas seu projeto de reeleição, mas a própria democracia brasileira.
*Felipe Araújo
Jornalista e advogado.