Com o título “Ouvidos moucos”, eis artigo de Jurandir Gurgel, mestre em Economia e membro do Conselho Curador da Fundação SINTAF. “A presente atuação parlamentar revela uma falta de conexão com os problemas crônicos que temos em nosso país (na educação, na saúde, na segurança), que, por sua vez, estão presentes na raiz de muitas outras disfunções encontradas nos mais diferentes setores da vida em sociedade, principalmente a desigualdade de renda que nos coloca na lista dos 15 países mais desiguais do mundo, ao mesmo tempo em que estamos na lista dos 15 países mais ricos do mundo, com um detalhe: somos o único a figurar nas duas listas. Como disse o Papa Francisco, “Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade”, expõe o articulista.
Confira:
Começo esse artigo, tratando do conceito de “Conflito de agência”, que ocorre quando há choque de interesses entre uma pessoa ou entidade (o proprietário) e outra (o agente) que atua em seu nome, levando o agente a tomar decisões que não são as melhores para o proprietário, mas que lhe trazem algum benefício próprio.
Referido conceito, concebido inicialmente no mundo corporativo privado, foi incorporado ao mundo do setor público por ser perfeitamente adaptável, uma vez que o principal (o proprietário) aqui é a sociedade, enquanto o agente são todos os agentes públicos, notadamente chefes do poder Executivo e parlamentares. Se o agente no setorprivado tem obrigação de gerar valor para os acionistas ou proprietários, de igual modoo agente público tem o dever de gerar valor público, isto é, atender de forma efetiva àsreais necessidades públicas.
Nesse diapasão, da separação entre a propriedade e a gestão, que caracterizam os conflitos de agência no tocante à relação entre os proprietários (sociedade/cidadãos) e os agentes (governos, políticos e gestores), surge a Governança Pública, para assegurar que os interesses da sociedade sejam considerados nas decisões dos agentes públicos. Nessa linha, vale lembrar a dicção do parágrafo único do art. 1º da CF de 1988 que estabelece que todo poder emana do povo. Dessa forma, o povo brasileiro é considerado – na governança pública – “proprietário”. Contudo, ultimamente, nossos agentes, em particular os parlamentares, com seus ouvidos moucos, não estão levando em consideração o poder popular no seu mister.
É emblemática a tramitação da PEC da Blindagem, cuja proposta previa que processos criminais contra deputados e senadores só possam ser iniciados no STF com aval do Senado ou Câmara, em votação secreta. A interpretação decorrente da regra prevista no art.53 da CF/1988 visava a garantir a liberdade de expressão e atuação dos parlamentares, mas foi modificada pela EC Nº 35 em 2001, devido às críticas de que sua interpretação produzia impunidade. Enquanto o referido artigo esteve vigente, conforme levantamento da CNN Brasil, somente foi autorizada a instauração de um processo e a maioria dos pedidos do STF não foi analisada, prescreveu e foi arquivada. Outra parte foi expressamente rejeitada.
Outro aspecto relevante em relação a essa PEC foi a pressa de sua votação, revelando uma peculiar “ética parlamentar” diante de um momento em que o STF se debruçou sobre suspeitas de corrupção envolvendo emendas parlamentares. Nossos representantes ignoram a importância do orçamento público, transformando-o em um canal de interesse próprio e não como instrumento que materializa as políticas públicas, transformando recursos financeiros em objetivos humanos. Cumpre afirmar que a ética envolve a reflexão sobre as ações e suas consequências na escolha pelo bem comum. “Sem ética parlamentar não é possível otimizar as políticas públicas”.
O mês de setembro foi pródigo na esquizofrenia parlamentar, revelando alterações no pensamento e no comportamento dissociados da noção da realidade, aliados à alucinação auditiva de só escutar a voz do próprio interesse. Os ouvidos moucos dos nossos representantes parecem dificultar o entendimento entre o interesse da PEC da Blindagem e a vontade real da população em rejeitá-la, bem como a PEC da Anistia.
A presente atuação parlamentar revela uma falta de conexão com os problemas crônicos que temos em nosso país (na educação, na saúde, na segurança), que, por sua vez, estão presentes na raiz de muitas outras disfunções encontradas nos mais diferentes setores da vida em sociedade, principalmente a desigualdade de renda que nos coloca na lista dos 15 países mais desiguais do mundo, ao mesmo tempo em que estamos na lista dos 15 países mais ricos do mundo, com um detalhe: somos o único a figurar nas duas listas. Como disse o Papa Francisco, “Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade”.
Em última análise, faço uma interpretação do profeta Amós 6,1.4-7, cuja profecia versava sobre a condenação, a complacência e ao luxo da elite de Israel e Judá, que vivia em autoindulgência, ignorando a justiça e o sofrimento do povo, e que se sentia segura em sua posição de poder e ostentação. Nessa linha, refiro-me às manifestações do povo brasileiro, como o profeta Amós, demonstrando que podemos ser profetas na medida em que temos o direito de anunciar e denunciar a inconsciência de grupos políticos e lideranças que mergulham na defesa de interesses particulares em detrimento das necessidades fundamentais do povo. É preciso denunciar a iniquidade de legisladores que se empenham em artimanhas para aumentar suas fortificações da
imunidade, contrariando que estas existem para garantir o nexo funcional da atividade parlamentar e não escudo para crimes.
Por fim, o trajeto até a próxima eleição será bastante acidentado e financiado com recursos públicos da ordem de R$ 4,96 bilhões para 2026. Portanto, estejamos atentos e façamos a voz da população ressoar de forma estridente nos ouvidos moucos dos nossos congressistas, garantindo, assim, que o nosso voto tenha consequência.
*Jurandir Gurgel
Mestre em Economia e membro do Conselho Curador da Fundação SINTAF.
jggondim@terra.com.br