Com o título “Peregrinos do Estado Democrático de Direito”, eis artigo de Jurandir Gurgel, mestre em Economia e membro do Conselho Curador da Fundação Sintaf. “Ser peregrino de esperança não está circunscrito ao âmbito religioso, é caminhar com a clareza no nosso contexto socioeconômico, que torna o nosso País o único a constar na lista dos países mais ricos e dos mais desiguais”, expõe o articulista.
Confira:
Confesso, ao decidir pelo conteúdo desse artigo, fui tomado por uma certa ousadia em chamar atenção para o tema: “Peregrinos da Esperança”, do Ano Jubilar de 2025, escolhido pelo Papa Francisco. A ousadia decorre de contextualizar o tema em uma realidade bem brasileira. Começo minha ousadia em preferir a expressão peregrinos de esperança, pois se refere aos que estão em peregrinação, levando consigo a esperança, sentimento por vezes contraditório que oscila desde a confiança ao medo, da serenidade ao desânimo, da certeza à dúvida. Contudo, a esperança educa nossa paciência, nossa serenidade e discernimento.
Ser peregrino de esperança não está circunscrito ao âmbito religioso, é caminhar com a clareza no nosso contexto socioeconômico, que torna o nosso País o único a constar na lista dos países mais ricos e dos mais desiguais. Certos de que a esperança nos educatambém a olhar para o futuro de forma mais otimista, mas, a concretude de uma realidade mais alvissareira depende que nossa peregrinação não seja inerte, muito pelo contrário, precisamos estar diligentes e atentos às decisões dos nossos representantes, que decidem em nosso nome os destinos do país. O ano de 2026 está próximo, é o ano em que todos nós nos tornamos valiosos pelo valor que tem o voto e, sendo assim, não podemos desperdiçar esse bem precioso que não tem preço, mas tem consequência.
Nossa jornada de esperança em 2026 vai passar inequivocamente pelo processo eleitoral, entretanto, é sempre bom lembrar que o direito de participação dos cidadãos não se encerra com o esse período. Precisamos estar vigilantes com os nossos representantes, que ultimamente têm dedicado um interesse especial às emendas parlamentares, que defendem a anistia de quem atentou contra nosso estado democrático de direito, que defendem mandato de quem protege atores eternos que atacam a nossa soberania, e que também defendem o processo de licenciamento ambiental desburocratizado, mas que, em verdade, atende aos interesses empresariais lucrativos e nocivos à nossa biodiversidade. Estamos presenciando atuações de quem mais deveria defender os princípios e objetivos fundamentais da nossa constituição, é que mais está aviltando esses princípios e objetivos do nosso estado democrático de direito.
De modo especial, chamo atenção para a preferência do Congresso Nacional sobre as emendas parlamentares. Antes, é importante deixar claro que existem basicamente quatro modalidades de emendas: individuais, de bancada, de comissão e as do relator-geral do Orçamento da União. Destaco que é fundamental o conhecimento da sociedade em torno desse assunto, porque as emendas canalizam o dinheiro do orçamento público para obras e serviços públicos a partir de iniciativa do Poder Legislativo para atendimento das necessidades públicas. Criadas na Constituinte de 1988, as emendas parlamentares visavam a ampliar a participação do Legislativo no processo orçamentário. No entanto, o que estamos vivenciando, hoje, é que, ao invés de cumprir esse papel, muitas vezes essas verbas têm servido para atender aos interesses políticos locais próximos das bases eleitorais dos parlamentares, uma espécie de clientelismo antigo com rótulo novo, mas de igual modo prejudicial à democracia e à igualdade de acesso aos serviços públicos.
Um exemplo dessa lógica ocorreu em 2022, quando escolas de Alagoas receberam R$ 26 milhões do Ministério da Educação (MEC) para investimentos em robótica. A verba, destinada por emenda do relator do Orçamento, resultou na entrega de 330 kits de robótica a instituições que, em sua maioria, não possuíam nem computadores, tampouco abastecimento de água. Nessa mesma linha de constatação, só para termos ideia, determinado município do estado do Ceará foi aquinhoado com essas emendas de forma muito generosa, haja vista se considerarmos a média dos valores de 2018 a 2022, que foi da ordem de R$ 2,27 milhões, contudo, a média de 2023 e 2024 saltou para R$ 35,07 milhões, registrando um crescimento nominal de 1.448%, segundos dados do Compara
Brasil. Essas emendas tiveram um aumento significativo nos últimos anos, com valores que passaram de R$ 6,14 bilhões, em 2014, para cerca de R$ 44,67 bilhões em 2024, segundo o FGV Ibre. Em 2025 esse valor subiu para R$ 54,42 bilhões, dos quais R$ 14,95 bi são das bancadas estaduais, R$ 18,87 bi de comissão e R$ 24,60 bi são das emendas individuais.
Por fim, uma preocupação presente é o aviltamento dos princípios e objetivos fundamentais insculpidos em nossa Constituição, bem como os princípios que regem a administração pública, dispostos no art. 37, inerentes à administração pública, que tornam-se mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce e disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas para a exata compreensão, inteligência e racionalização do sistema normativo, cujo sentido é garantir o “dever de boa administração”.
*Jurandir Gurgel
Mestre em Economia e membro do Conselho Curador da Fundação Sintaf
jggondim@terra.com.br