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“Pode me esquecer”

Capa de disco de Chico. Foto: Arquivo

Com o título “Pode me esquecer”, eis artigo de Mantovanni Colares, juiz estadual, professor e escritor. E, por muitos, tido como “chicólatra” ou “chicólogo.

Confira:

O ano era 1974. O governo do general Emílio Médici chegaria ao final naquele período e substituído pelo também general Ernesto Geisel. Repressão e censura foram marcas evidentes nos quatro anos de continuidade da ditadura instaurada com o golpe de 1964 e que avançou com maior intensidade em 1968, a partir de uma anomalia jurídica chamada de “ato institucional”, a conferir amplos poderes ao regime militar. Uma das classes mais perseguidas à época foi a dos artistas.

Particularmente, Chico Buarque era alvo constante dos censores, burocratas integrantes do Serviço de Censura de Diversões Públicas, do Ministério da Justiça. Isso ocorreu desde 1970, com o veto a “Apesar de Você”, cuja análise primeira deixou escapar a canção, o disco foi comercializado mas, depois, os exemplares apreendidos – talvez por entender o censor que se tratava de uma música romântica (Água nova brotando / E a gente se amando / Sem parar), passando por Cálice (1973), em parceria com Gilberto Gil e a violenta proibição total da peça teatral “Calabar: o Elogio da Traição”, escrita com Ruy Guerra. Assim, para o Chico, ficava cada vez mais difícil obter a liberação de suas composições, daí veio a ideia de lançar um disco como cantor, interpretando músicas de
outros artistas.

Pois o álbum “Sinal Fechado” (1974) representa justamente essa ironia por demais sutil e que passou despercebida pelos censores de ocasião. A começar pelo título do disco, a indicar um sinal fechado em seu ofício. A canção, na verdade, retrata uma situação típica da cultura carioca: dois amigos se encontram por conta do semáforo vermelho, os carros em paralelo possibilitando o rápido diálogo, a promessa de que deveriam se encontrar durante a semana, o sinal abre e cada um segue seu rumo e certamente jamais concretizariam o prometido encontro. Composição de Paulinho da Viola. A capa do álbum também mostra um Chico querendo falar, gritar, cantar, em vários quadros, num aparente silêncio diante do sinal fechado da censura.

O interessante nesse disco é que algumas canções até hoje são consideradas do próprio Chico, tal a forma com que ele impregnou a música com sua interpretação. É o caso de “ Sem Compromisso”, composta por Nélson Trigueiro e Geraldo Pereira. Tempos depois, Chico faria uma espécie de tríduo quase teatral a partir dessa música, tendo por sequência “Deixe a Menina” (1980) e “Sou Eu” (2009, em parceria com Ivan Lins), com a cena do marido ciumento diante da amada em seu furor de dançar, num saboroso episódio de ciúme, inveja dos amigos e o conformismo do marido com sua mulher, sempre desejada.

Lembro de uma amiga ter falado certa vez que a filha, de nome Lígia, ficou decepcionada ao saber que a canção não era do Chico, e sim de Tom Jobim. Falei para ela que Chico acabou sendo um parceiro oculto na música, trocando versos sem querer assumir a parceria, mas que deram uma cadência poética mais bela, como “seus olhos morenos” em vez de “seus olhos castanhos”. Confiram as duas letras, a inicial (com gravação do Tom) e a lapidada por Chico, e sentirão ali a presença mágica do poeta. Vale ouvir o disco por tantas canções de extremo bom gosto, como “Festa Imodesta” (Caetano Veloso), “Filosofia” (André Filho e Noel Rosa), “O Filho Que Eu Quero Ter” (Toquinho e Vinicius de Moraes), “Copo Vazio” (Gilberto Gil), “Cuidado Com a Outra”
(Nélson Cavaquinho e Augusto Tomaz Jr.), “Lágrima” (Jackson do Pandeiro, José Garcia e Sebastião Nunes), “Você Não Sabe Amar” (Carlos Guinle, Dorival Caymmi e Hugo Lima) e “Me Deixe Mudo” (Walter Franco).

Mas… o ponto alto do disco é a canção do próprio Chico, escondida entre essas outras. “Acorda Amor” é o escracho em forma de samba do que se tornou o Brasil em 1974, quando era necessário chamar o ladrão porque a polícia invadia as casas em buscas dos chamados subversivos (contestadores do regime militar) e os levavam sem se saber se voltariam ao seu lar. Ali se consegue ver (nos versos) e ouvir (na música) um Chico Buarque por inteiro. “Acorda amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”.

E tem a história por detrás da história. Chico criou um verdadeiro heterônimo para driblar a censura. Julinho da Adelaide. E para não ficar só na ideia de um nome fictício como autor da canção, deu vida à personagem com entrevista em jornal. Criou-se todo um entorno narrativo para que acreditássemos que de fato Julinho era gente. Por isso digo se tratar de um heterônimo, esse recurso artístico lançado por Fernando Pessoa ao criar suas ficções literárias com vida própria, como se de fato existissem.

A parte mais tocante da música – até para contrastar com a dureza dos arrancados de casa e desaparecidos pelas mãos sujas da ditadura – é quando o eu lírico da canção diz à namorada que se ele demorar, seria conveniente ela às vezes sofrer. Mas depois de um certo tempo, caso ele não voltasse, ela deveria viver sua vida. É a comicidade no espaço mais belo dentro do drama. “Mas depois de um ano eu não vindo / Ponha a roupa de domingo / E pode me esquecer”, arremata o final da canção. Vivemos a consolidação da democracia e “Acorda Amor” se tornou peça histórica, felizmente.

No desejo de um natal musical e um feliz ano novo que se avizinha, recomendo que, numa noite tranquila entre esses períodos agitados de festa, procurem o disco “Sinal Fechado” no streaming, ou toquem em aparelhos de CD ou até mesmo de vinil, e se deliciem com esse álbum que completará 50 anos justamente no ano de 2024 que se anuncia.

“Pode me esquecer” se tornou aviso/lamento impregnado de puro charme. Desde aquele drible na censura, da criação de Julinho da Adelaide, da demonstração de um Chico cantor, dos labirintos de sua composição camuflada pelo nome “Acorda Amor”, do disco em breve cinquentenário, eu pergunto, diante de tudo isso é possível esquecer Chico Buarque seja em que instante for?

*Mantovanni Colares

Juiz estadual, professor e escritor.
E, por muitos, tido como “chicólatra” ou “chicólogo.

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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  • A narrativa do professor Mantovanni Colares é quase uma intrusão à alternância compulsiva entre telas eletrônicas no domingo. Em lugar da decepção inesperadada com a hora de dormir sem a herança proveitosa que o dia poderia prover, a leitura alegre e recheada de fatos históricos do magistrado convida a uma discografia complexa e elaborada, passa por fantasmas do passado que ainda assombram nosso presente e por uma análise litero-musical que consegue encobrir a maturidade do estudioso denso e sutil, com a genenrosidade e discrição da árvore carregada de frutos que se curva para melhor servir.

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