“Luizianne e Aristeu Eduardo, prefeito de Ararendá, explicitam duas visões da realidade muito distintas, talvez antagônicas, mas abrigadas no mesmo partido. O que isso significa?”, aponta o jornalista Carlos Holanda
Confira:
Dois filiados ao PT do Ceará foram tema de matérias na imprensa local e nacional nos últimos dias. Razões muito distintas justificam as menções jornalísticas. A primeira é a deputada federal Luizianne Lins (PT). O segundo, o prefeito de Ararendá (330 km de Fortaleza), Aristeu Eduardo (PT). No momento em que este texto é revisado, às 15h50min de sexta-feira, 3, a militante está presa no deserto de Israel. O conjunto de embarcações que navegava com destino à Gaza foi interceptado por forças militares israelenses, frustrando o plano dos tripulantes.
O grupo tem o objetivo de fazer chegar ajuda humanitária ao povo palestino que sofre e morre sob a carnificina comandada pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Algo como alimentos não perecíveis, medicamentos essenciais, itens de higiene e cobertores. A palavra “carnificina” foi utilizada pelo chefe de direitos humanos da ONU, Volker Türk, em 16 de agosto de 2025, como definição do que ocorre para os lados de lá. A parlamentar e mais 13 brasileiros estão detidos.
Luizianne é filiada ao PT desde 1989, ano em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disputou e perdeu a primeira eleição nacional. A existência da deputada federal pressupõe a da prefeita de capital; a da prefeita, a da deputada estadual; a da deputada estadual, a da vereadora. A da vereadora, da militante partidária e estudantil. Militante cujas inclinações marxistas nunca foram escondidas de ninguém.
Pessoas com esta estatura se forjam nos livros, nas instâncias partidárias, nos sindicatos, nas universidades e nas ruas. Em vários outros ambientes onde há debates, protestos e formulação de ideias. A concepção de socialismo de Luizianne, como ela disse no Instagram, é internacionalista.
Para Lev Davidovich Bronstein, o Leon Trotsky (1879-1940), a libertação da classe trabalhadora precisa ocorrer em nível internacional, não em um único país, de modo isolado, sob pena de uma revolução confinada ser engolida pelo capital internacional. Por este ângulo, defender o proletariado de Gaza é, a um tempo, defender o proletariado de Ararendá, Milhã ou de Salitre.
As virtudes de Luizianne em muitos momentos tomam feições de defeitos por ela ser demasiadamente humana e segura no que defende. Não pretendo entrar no mérito do que defende Luizianne ou o Estatuto do PT. Mas é possível afirmar que o PT municipal, estadual e nacional tem razões de sobra para se orgulhar da militante orgânica que possui.
Do lado ideológico ao lado fisiológico da mesma força. O prefeito de Ararendá, Aristeu Eduardo (PT), filiado à agremiação no início dos anos 2000, foi manchete de site jornalístico nacional pela intolerância religiosa manifestada numa espécie de palanque. O gestor cuspiu ataques verbais contra religiões de terreiro de matrizes africanas.
O que faz um mesmo partido abrigar dois perfis tão distintos de filiados? Foi a pergunta encaminhada a Deodato Ramalho, petista histórico e membro da tendência Articulação de Esquerda, que no Ceará atende pelo nome Campo de Esquerda. Grupo minoritário no PT.
Ramalho é crítico a um modo de crescimento partidário entendido como artificial. É uma voz constante na defesa daquilo que o PT poderia ser, mas por razões pragmáticas não é. Em palavras claras, menor e mais qualificado.
“É uma demonstração muito clara que se deve fazer entre uma militância programática e ideológica que guarda os princípios e as raízes fundantes do Partido dos Trabalhadores, como a companheira Luizianne Lins e tantos outros que se mantêm fiéis aos nossos postulados socialistas, internacionalistas e democráticos”, ele separa.
Conforme o petista, “essas filiações, como a do cidadão que você refere aí, são exatamente filiações que acabaram acontecendo fruto do famoso fisiologismo e oportunismo que marcam a política nacional e que faz com que figuras que não guardam nenhuma proximidade política, ideológica e programática com o Partido dos Trabalhadores.” No Brasil todo ocorre, disse, mas no Ceará é gritante.
Ainda conforme Ramalho, ex-presidente do PT de Fortaleza, estas lideranças não aguentam a primeira pesquisa de opinião com cenário desfavorável ao PT. “Se dizia antigamente: ‘hay gobierno, soy contra”. No caso dessa gente, ‘hay gobierno, soy a favor’, complementa o militante.
Setor religioso do PT pede retratação
Em nota enviada nessa sexta-feira, 3, o Setorial Nacional Inter-Religioso do PT manifestou repúdio aos atos de intolerância religiosa praticados pelo prefeito de Ararendá, Aristeu Eduardo (PT). A instância do partido faz duas exigências: a retratação pública e imediata e a abertura de diálogo com lideranças religiosas de matriz africana e com o movimento negro do município.
“Não podemos e não vamos compactuar com qualquer forma de opressão, especialmente aquela que vem vestida da autoridade pública. O PT tem em sua história a defesa intransigente dos direitos humanos, da liberdade religiosa e da igualdade racial”, diz o documento.
E prossegue: “Reafirmamos nosso compromisso com a luta antirracista e com a construção de uma sociedade verdadeiramente plural, onde a diversidade religiosa seja celebrada e não perseguida. Seguiremos vigilantes, cobrando de nossas próprias filiadas e filiados a mais estrita observância dos princípios programáticos do PT.”
Uma das exigências do Setorial Inter-Religioso do PT foi atendida. O prefeito emitiu nota segundo a qual afirma ter profundo respeito por todas as tradições religiosas, “inclusive as de matriz africana, que representam parte essencial da história do nosso povo”. Conforme o petista, a diversidade de crenças é parte da história do Brasil e de Ararendá, razão pela qual deve ser valorizada e protegida. Sobre o próprio ato discriminatório, afirmou que reações mais firmes podem surgir em contextos de ataques injustos, persistentes e difamatórios. Ele diz receber reiterados ataques, que também alcançam sua esposa, mas não especifica quais.
Presidente do PT: “o ouviremos a respeito”
O autor do artigo questionou o presidente reeleito do PT do Ceará, Antônio Conin, se Eduardo será punido pelas falas de teor discriminatório. Se sim, indagou que gênero de consequências o gestor pode enfrentar. Em resposta via WhatsApp, Conin, afirmou nessa sexta-feira, 3:
“Oi, Carlos, o PT já está tratando do assunto. Convidei o prefeito para uma reunião, na qual o ouviremos a respeito, após o que definiremos o encaminhamento adequado. Reiteramos de logo nosso respeito a todas as religiões, inclusive as de matriz africana. Defendemos o diálogo interreligioso como forma de superação de todo tipo de intolerância.”
Carlos Holanda é jornalista