Com o título “Quando os dados pessoais viram herança?”, eis artigo de Joyceane Bezerra de Menezes, professora universitária e advogada. “A discussão sobre herança digital exige diferenciar bens digitais patrimoniais e não patrimoniais”, expõe a articulista.
Confira:
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) julgou recentemente um caso que reacende um tema ainda sem regulamentação no Brasil: a chamada herança digital. No processo, uma mãe buscava acesso às contas digitais do filho falecido, com o objetivo de compreender as circunstâncias de sua morte, suspeitando inclusive de suicídio. Rememora um caso apreciado pelo tribunal alemão, quando os pais de uma adolescente buscavam o acesso à conta dela no Facebook para entender se a sua morte seria decorrente de suicídio ou acidente. Em 2015, o tribunal de Berlim negou o acesso com base na proteção à privacidade, mas em 2018, o Tribunal Constitucional alemão reformou a decisão, reconhecendo que os herdeiros têm direito de acessar o conteúdo digital do falecido, equiparando-o a cartas e diários pessoais. Considerou que naqueles casos, os dados integram a herança e podem ser fundamentais para esclarecer as circunstâncias da morte.
No julgamento pelo TJSP, o Google foi condenado a fornecer os dados de acesso às contas do falecido. A corte reconheceu o legítimo interesse da mãe em esclarecer a morte e preservar a memória familiar. Em contrapartida, foi negado o pedido de acesso ao conteúdo do WhatsApp, em razão da criptografia de ponta a ponta, que tecnicamente inviabiliza o fornecimento das mensagens. A decisão se baseou em três fundamentos principais: a ausência de regulamentação específica sobre herança digital no Brasil, a possibilidade de analogia com a herança de cartas e manuscritos pessoais (arts. 1.788 e 1.791 do Código Civil), e a necessidade de equilibrar a proteção à privacidade do falecido e de terceiros com o direito do herdeiro de acessar informações relevantes.
A discussão sobre herança digital exige diferenciar bens digitais patrimoniais e não patrimoniais. Os bens digitais patrimoniais são aqueles com conteúdo econômico, como saldos em plataformas, direitos sobre criptoativos ou contas que geram receita. Esses, em regra, são transmissíveis aos herdeiros. Já os bens digitais não patrimoniais englobam dados pessoais, fotos, mensagens e textos íntimos. Podem incluir, inclusive, informações sobre terceiros com os quais o falecido se comunicava. De acordo com o art. 11 do Código Civil, tais direitos da personalidade são intransmissíveis e
irrenunciáveis.
Ainda assim, decisões judiciais, como a do TJSP, têm autorizado, em situações excepcionais, o acesso a dados pessoais, especialmente quando existe legítimo interesse familiar ou necessidade de elucidar fatos relevantes, como uma morte inesperada. O tema evidencia a urgência de regulamentar a herança digital no Brasil. Enquanto isso, herdeiros e plataformas se veem em disputas complexas, que exigem ponderação entre memória, privacidade e direitos sucessórios.
*Joyceane Bezerra de Menezes
Professora universitária e advogada.