“É estranho que altas autoridades participem de evento organizado pela empresária que vê Bolsonaro como perseguido por essas mesmas autoridades”, aponta o jornalista e escritor Moisés Mendes. Confira:
Uma pergunta: que grupo vinculado a nomes progressistas, democratas ou de esquerda – ou com outra definição que os apresentem como contraponto à direita e à extrema direita – conseguiria reunir duas dúzias de altas autoridades de República num evento, não em Londres, mas em qualquer cidade brasileira?
Não um grupo vinculado a instituições ou entidades consagradas, sem o objetivo do lucro, mas a uma corporação privada configurada como negócio. Que grupo levaria a encontro para palestras algumas das mais altas autoridades da República, se os organizadores desse evento não fossem da direita ou da extrema direita?
A empresária gaúcha Karim Miskulin não precisa de sindicatos bolsonaristas da Fiesp ou da Firjan ou similares, para fazer o que entidades de representação corporativa ou chamadas ‘de classe’ conseguem sem muita dificuldade.
Karim é dona da Voto, uma empresa de eventos, assessoria e marketing, dedicada à “interlocução entre o setor público e o privado através de relacionamento, comunicação e conexões de poder na construção de uma nova cultura política e empresarial”.
Karim fez, na campanha de 2022, uma aposta pesada na interlocução entre Bolsonaro, empresários e executivos e executivas de grandes empresas. Perdeu, mas está aí, levando a Londres muita gente que gostaria de ver Bolsonaro preso.
Karim Miskulin organiza o 1º Fórum Jurídico-Brasil de Ideias, que acontece de quarta a sexta-feira. Terá palestras dos ministros do STF Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.
Também estão lá o advogado-geral da União, Jorge Messias, o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, além de integrantes do Cade, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica.
João Doria faz esse tipo de evento no Exterior há muito tempo com seu grupo Lide. O próprio Gilmar Mendes organiza seminários semelhantes, geralmente em Portugal, com o seu Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.
Dizer se é de bom tom ou não, como diria Keila Mellman, a consultora de etiqueta criada pela atriz Ilana Kaplan, é outra conversa. Uma conversa que passa pelas abordagens que o professor e jurista Conrado Hübner Mendes tem feito sobre estranhas confrarias nesse mundo do Direito.
Mas ficam inquietos os brasileiros comuns que tentam entender como uma empresa consegue reunir tantos homens importantes – todos comprometidos com as instituições que os acolhem e com a afirmação da democracia –, se a dona da organização privada que convidou essas autoridades exalta Bolsonaro como líder.
No dia 20 de fevereiro desse ano, o jornalista Fábio Zanini publicou na Folha essa declaração da empresária e cientista política, sobre suas expectativas em relação ao que aconteceria cinco dias depois em aglomeração na Avenida Paulista:
“Ainda que inelegível, o ex-presidente é o principal líder da direita brasileira. Com candidatos bem posicionados em todas as capitais, Bolsonaro torna-se o cabo eleitoral mais desejado por novos políticos, que em 2026 serão aliados necessários e leais”.
Mais adiante, disse o seguinte, ao prever a presença de uma multidão: “Isso se deve ao fato de que Bolsonaro não é a soma de alguns líderes, mas o resultado de uma profunda indignação popular, que é fervorosa e se multiplica na internet”.
Foi uma declaração de engajamento, de entusiasmo e de ativismo a um ato tomado de golpistas, liderado pelo líder da tentativa de golpe, o primeiro organizado por Silas Malafaia.
Não se sabe o que a empresária achou do segundo ato fracassado em Copacabana. Mas se sabe, pelas declarações dadas a Zanini, que a dona da Voto vê uma perseguição do sistema de Justiça a Bolsonaro. Zanini escreveu:
“Ela (Karim) aponta o risco de muitas pessoas deixarem de comparecer (ao evento na Paulista) por medo da reação do STF. Mas lembra que o ex-presidente tem conseguido sustentar a teoria de que é perseguido”.
As autoridades brasileiras não foram a Londres a um evento da direita liberal de João Doria, mas a uma confraternização organizada por uma liderança empresarial assumidamente admiradora de Bolsonaro. E que considera Bolsonaro perseguido pelas instituições cujos altos servidores foram convidados a falar em seu evento em Londres.
Todos os que foram a Londres como servidores de alguma instituição, da Polícia Federal, passando por Ministério Público e chegando à mais alta Corte do Judiciário, têm protagonismo em investigações envolvendo Bolsonaro e seus golpistas, muambeiros, falsificadores de cartões de vacina e propagadores de fake news.
Todos eles ainda são desafiados por Bolsonaro. Foram desafiados na Paulista e em Copacabana. Todos fracassaram até agora na tentativa de chegar ao núcleo empresarial do golpe, o reduto de endinheirados que sustentaram o gabinete do ódio, as milícias digitais e as franquias de produção de fake news.
O núcleo empresarial do golpismo está vencendo a guerra contra o sistema de Justiça. Estão tombando as estruturas militares, os operadores palacianos e os manés da invasão de 8 de janeiro. Mas o núcleo empresarial está intacto.
Se altas autoridades ainda se preocupam em passar mensagens edificantes a cidadãos comuns que não participam de eventos londrinos, essa é a hora de dizer alguma coisa a quem ficou constrangido com essa excursão. A mensagem pode vir de Londres.
Moisés Mendes é jornalista, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim). Foi editor especial e colunista de Zero hora, de Porto Alegre