Com o título “Quando o humor vira crime”, eis artigo de Rui Leitão, jornalista, historiador e membro da Academia Paraibana de Letras. “O humorista não está liberado para, ao fazer uso de um microfone, se eximir da responsabilidade por atos considerados racistas. Naturalizar o racismo na elaboração de piadas é algo inadmissível, pois termina por transformar o entretenimento cômico em um discurso político agressivo”, expõe o articulista.
Confira:
A 3ª Vara Criminal Federal de São Paulo, atendendo a um pedido do Ministério Público, sentenciou a oito anos e dois meses de prisão, em regime fechado, o humorista Léo Lins por fazer piadas com conteúdo racista em um show realizado em 2022. Isso tem gerado muita polêmica.
É inquestionável que a liberdade de expressão é um dos pilares de qualquer democracia. Contudo, isso não significa que essa liberdade possa ser usada para promover o ódio, a violência ou a discriminação. A nossa Constituição é muito clara ao estabelecer que o racismo não encontra abrigo em manifestações que ofendam a dignidade humana — ainda mais quando acontece por meio do humor para zombar da cor da pele, da origem ou da aparência de alguém. Deixa de ser piada para se transformar em crime.
A nossa Carta Magna, em seu artigo 5º, assegura a liberdade de expressão, mas também garante os direitos à dignidade humana, à igualdade e à proteção contra qualquer tipo de discriminação. Se uma manifestação artística atinge diretamente a dignidade de um grupo social, passa a ser passível de responsabilização legal. Portanto, é preciso diferenciar censura do que pode ser considerado responsabilização jurídica.
O racismo recreativo não pode ser compreendido como humor inofensivo. Pelo contrário, estimula o tratamento de exclusão e de subalternidade a que, historicamente, tem sido submetida a população negra em nosso país. Merece reprovação, não só por questões éticas, mas porque se configura como uma brincadeira que humilha, reforçando preconceitos que não podem ser admitidos. Daí a razão de tornar esse tipo de piada juridicamente punível, sem que isso se caracterize como censura à liberdade artística.
O humorista não está liberado para, ao fazer uso de um microfone, se eximir da responsabilidade por atos considerados racistas. Naturalizar o racismo na elaboração de piadas é algo inadmissível, pois termina por transformar o entretenimento cômico em um discurso político agressivo. Sinceramente, fico em dúvida se uma piada de mau gosto provoca risos, a não ser de pessoas igualmente preconceituosas. O comediante punido pela Justiça é conhecido pela prática de um humorismo recheado de piadas dirigidas a diversos grupos, como negros, indígenas, pessoas com deficiência, idosos, nordestinos, judeus, evangélicos, homossexuais e soropositivos.
Pode-se rediscutir a dosimetria da pena aplicada, mas jamais aceitar como normal o uso do humor para, sob o pretexto da liberdade de expressão, ofender, humilhar ou discriminar quem quer que seja.
*Rui Leitão
Jornalista, historiador e escritor, membro da Academia Paraibana de Letras.