“Redução de jornada: livre negociação é mera falácia” – Por Valdélio Muniz

Valdélio Muniz é jornalista. Foto: Divulgação

Com o título “Redução de jornada: livre negociação é mera falácia”, eis artigo de Valdélio Muniz, jornalista, analista judiciário, mestre em Direito Privado, professor da Fadat e e membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (GRUPE) da UFC. “Francamente. Às vezes parece até que certos legisladores fingem viver, como Alice, no país das maravilhas. Desconectados integralmente do mundo real. Empregado (parte economicamente dependente) ter direito de escolha é uma retórica tão forçada que deveria corar o rosto de quem a defende, se tivesse um mínimo de vergonha e compromisso com o que fala”, expõe o articulista.

Confira:

Como era de se esperar desde que foi protocolizada na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 8/2025, articulada pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que sugere a redução da jornada semanal de trabalho no Brasil, com o fim da chamada jornada 6×1, a bancada da oposição admitiu, há poucos dias, estar se mobilizando para barrar a iniciativa, apesar dos inúmeros apoios à PEC em redes sociais e entidades sindicais. Segundo revelado pelo deputado Maurício Marcon (Podemos-RS), a estratégia adotada pelo grupo que ele integra foi apresentar contraproposta, denominada PEC da Liberdade da Jornada, que prevê “flexibilizar as relações trabalhistas e dar ao trabalhador autonomia para definir sua carga horária”.

Chega a ser risíveis os termos utilizados na referida contraproposta. A começar pela ilusória promessa de flexibilização. Historicamente, no Brasil, a palavra flexibilizar tem sido sinônimo, na prática, de precarização. E a razão é simples: a legislação trabalhista no País, mesmo antes da “Deforma” Trabalhista promovida em 2017 (por meio da Lei nº 13.467), sempre permitiu que normas mais favoráveis aos trabalhadores do que as previstas na Constituição e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) fossem firmadas em negociações coletivas (acordos e convenções) ou mesmo em contratos individuais.

Mas, não era essa “flexibilização” que desejavam os parlamentares (muitos deles empresários ou financiados por empresários) eleitos por trabalhadores e atuantes na defesa real dos interesses do poder econômico. Queriam, isso sim, que a legislação permitisse a negociação de direitos em patamar inferior ao que era previsto na CLT e que, uma vez negociado, fosse reconhecida sua validade e prevalência. E foi isso que fizeram em 2017 no que chamaram de Reforma da CLT.

Com a inclusão do artigo 611-A da CLT, os legisladores reformistas indicaram uma lista meramente exemplificativa (não fechada) de direitos passíveis de negociação, ainda que para pior do que esteja previsto em lei, com a garantia de que prevalecerão sobre ela. Mesmo assim, vejam só, foi dito à época que a Deforma “flexibilizou” a legislação. Ou seja, usou-se de um termo simpático, pós-moderno, como “flexibilização”, para esconder o real propósito de precarização. E ainda se gabaram de ter “protegido” uma série de direitos (art.611-B da CLT) dessa possibilidade de negociação para menos, omitindo o fato de que esta lista de direitos, por incluir previsões contidas no artigo 7º da Constituição Federal, obviamente não poderiam mesmo ser reduzidos através de mera lei ordinária como a da “Deforma” nem sequer por uma PEC.

Na Língua Portuguesa, chama-se eufemismo a figura de linguagem que suaviza ou atenua uma palavra forte substituindo-a por outra mais “simpática”, sem, porém, modificar seu sentido ou seu efeito. No caso presente, a bancada de oposição volta a utilizar a eufemística flexibilização e a falaciosa ideia de autonomia do trabalhador “para definir sua carga horária”. Alega que o texto da contraproposta permite que o empregado possa escolher entre o regime tradicional da CLT, com até 44 horas semanais, uma jornada diária fixa ou um modelo flexível baseado em horas trabalhadas, “conforme sua realidade pessoal e profissional” (como se todos tivessem o mesmo poder de um William Bonner ou de um Neymar). A adesão seria “voluntária e definida em comum acordo entre empregado e empregador, mantendo os direitos garantidos pela legislação vigente”.

Francamente. Às vezes parece até que certos legisladores fingem viver, como Alice, no país das maravilhas. Desconectados integralmente do mundo real. Empregado (parte economicamente dependente) ter direito de escolha é uma retórica tão forçada que deveria corar o rosto de quem a defende, se tivesse um mínimo de vergonha e compromisso com o que fala. Modelo flexível baseado em horas trabalhadas já foi criado pela Deforma, em 2017, com o nome de contrato intermitente e que nem de longe gerou os resultados prometidos de tão desvantajoso que tem se mostrado para ambas as partes (contratantes e contratados) da forma como estabelecido no Brasil (sem a mínima convergência com a inspiração europeia original). No dicionário da Língua Portuguesa, não custa lembrar, falácia significa “argumento enganoso que parece válido, mas não é logicamente consistente ou sustentável”. Também diz o velho “pai dos sábios” que falácia pode ser usada para manipular o interlocutor ou ser resultado de um raciocínio inadequado”. Perfeitamente aplicável ao caso. Curiosamente, mas não por acaso, a origem etimológica de falácia remete ao latim “fallere”, que quer dizer enganar.

Pergunte a IA o que é identificar falácias e ela dirá: “É uma habilidade crucial para o pensamento crítico, pois permite analisar se um argumento é sólido ou apenas retórico”. Ora, dizer que o trabalhador poderá escolher entre o modelo tradicional da CLT, de 44 horas semanais e outro supostamente mais “flexível” é exatamente manter congelada a jornada semanal atual, diferentemente do que é claramente proposto pela PEC 8/2025. Por mais que não se considere viável, de imediato, a redução proposta para 36 horas semanais poderia se dar gradativamente (reduzindo-a desde já para 40 horas semanais). Como outros países e mesmo algumas empresas (sem ranços escravagistas) já ousaram fazer e foram bem sucedidos.

Marcon alega que “o futuro do trabalho é a liberdade de escolha”. Novamente, a palavra encantadora liberdade sinalizando o que o passado já nos mostrou não ter sido a panaceia (solução mágica para problemas complexos) prometida. A Revolução Francesa (1789) e seu ideal de liberdade trouxe consigo a lógica do laissez faire, apregoando que o Estado deveria se manter distante das relações econômicas (entre elas o trabalho), pois o mercado daria conta de bem caminhar “com suas próprias pernas”. E o que a primeira Revolução Industrial (1760-1860) e a expansão das fábricas nos apresentou, naquele período, foram jornadas abusivas de até 17 horas diárias, crianças, jovens, mulheres e idosos trabalhando (e morrendo) de domingo a domingo.

O Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848) e a encíclica Rerum Novarum (do Papa Leão XIII, de 1891) denunciaram com ênfase a situação dos operários da época e a necessidade, sim, de o Estado se fazer presente nestas relações, dada a desigualdade econômica clara que existe entre as partes envolvidas, para garantir o equilíbrio necessário, a vida e a saúde dos trabalhadores. Mas, para muitos, a história parece que nada ensinou. Caminham para repetir os mesmos erros do passado e ainda colorindo-os com os adornos da “liberdade” e da “flexibilização”.

Para finalizar, vale lembrar que a Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em 1919, tratou em sua convenção nº 1, naquele mesmo ano, de orientar os países membros a limitar a jornada a 8 horas diárias e 48 horas semanais. Tudo que conseguimos até aqui (106 depois) foi reduzir quatro horas semanais, a despeito de todos os avanços tecnológicos e da promessa vã de que, com eles, disporíamos de mais tempo livre. E quando se tenta promover uma nova, urgente e necessária redução (com ganhos para a criação de novos postos de trabalho – geração de emprego e renda para mais cidadãos -, para a saúde e a segurança dos trabalhadores, para a concretização de direitos igualmente sociais ao lazer, educação, saúde, cultura e convivência familiar e comunitária), adota-se novamente a falácia da autonomia para barrar uma conquista assim não enxergada por mentes enviesadas.

*Valdélio Muniz

Jornalista, analista judiciário, mestre em Direito Privado, professor da Fadat e e membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (GRUPE) da UFC.

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