Com o título “Rendeiras”, eis mais um conto da lavra de Totonho Laprovitera, arquiteto urbanista, escritor e artista plástico.
Confira:
No labirinto dos meus pensamentos, onde a memória anda com alpercatas de couro e olhos descalços, espio as rendeiras, silenciosas, pelejando na almofada do tempo como quem reza, fiando destino com mãos ágeis. No xote ritmado dos bilros, um zabumba encanta essas mulheres que desenham em arabescos de linha fina, bordando o imaginário com a coragem de quem sabe enfrentar a vida.
Os alfinetes, espinhos de mandacaru, cravados como sentinelas, guiam o baião dos fios feito mestres de quadrilha junina em terreiro miúdo, de chão batido, onde cada ponto é um mistério confiado somente a quem escuta com o coração.
E pensar que tudo principia ali: numa flor de algodão. Branquinha, quieta, nascida do sertão, guardando dentro de si o cabeçalho de uma arte. Ninguém dá nada por ela no começo, mas quem sabe das coisas entende: a maciez dessa flor urde a firmeza das tramas. E da sagrada humildade da terra nasce o patriciado das mãos trabalhadoras, sem pressa, com a sabedoria respeitosa ao tempo.
Renda é um fazer delicado, de paciência e arte. Consiste em entrelaçar ou recortar fios de algodão, tudo feito à mão, formando desenhos variados, quase sempre com aparência transparente ou vazada. A renda nasce e cresce do fio conduzido por agulhas, trançado em bilros ou formado por nós bem firmes.
As rendeiras, vaidosas por seus fazeres, vestiam por baixo da saia principal outras duas, de algodão bom, com barrados de renda na ponta, bem engomados. Usavam também a blusa de dentro, uma espécie de combinação, toda debruada com renda renascença, feita com o mesmo capricho com que bordavam a vida.
Renda não se faz só com linha, faz-se com lembrança. Cada traço expressa o gesto de uma avó, o olhar de uma mãe, a esperança de uma filha. No vai e vem do bilro, canta-se a história de uma gente, escrita em ponto de filé, labirinto, renascença. É poesia sem letra, escultura de sopro, carta de afeto.
Assim, entre um pensamento e outro, descubro: as rendeiras são guardiãs de um mundo onde o passado ainda vive, onde o presente se fia com candura e o futuro se entrelaça na leveza da renda. E tudo, tudo mesmo, começou com uma simples flor de algodão.
Coincidência ou não, enquanto escrevo agora, ouço no rádio: “Olê, mulé rendera / Olê, mulé renda / Tu me ensina a fazê renda / Que eu te ensino a namorá…”
Para quem não sabe, “Mulher Rendeira” – autoria atribuída a Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião – foi gravada em 1957, ano em que nasci, por Volta Seca, ex-cangaceiro de seu bando. A canção integra o álbum “Cantigas de Lampião”, lançado pela gravadora Todamérica.
*Totonho Laprovítera
Arquiteto urbanista, escritor e artista plástico.