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“Rua sem alma” – Por Suzete Nocrato

Suzete Nocrato é jornalista e mestre em Comunicação Social da UFC. Foto: Arquivo Pessoal

Com o título “Rua sem alma”, eis artigo de Suzete Nocrato, jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará. Haja sensibilidade…

Confira:

Moro em um bairro de classe média. Quando nos mudamos, nossa rua ainda tinha alma. As casas eram de muros baixos, ladeadas por um canal estreito, no qual se atravessava por uma ponte improvisada de madeira. De um lado, um pequeno sítio e um conjunto residencial de três andares; do outro, vizinhos que se conheciam, se visitavam, compartilhavam a vida.

No fim da tarde, a rua se enchia de vida, de vozes. Crianças correndo, risos, conversas nas calçadas, adolescentes trocando sonhos e confidências sob o céu pintado com tons quentes.

Quarenta e três anos se passaram. O lugar está irreconhecível. A alma da rua se esvaiu aos poucos, consumida entre o descuido e a ambição. As casas estão sendo substituídas por torres de vidro, apartamentos compactos e impessoais, com aluguéis que excluem. A vizinhança de antes quase não mais existe. Alguns poucos, como nós, ainda resistem. Somos sobreviventes dos assaltos, da especulação imobiliária, da violência que se instalou com o tempo.

A rua da minha adolescência e juventude já não mais existe. No nosso quarteirão, nove das dez casas ainda permanecem, agora escondidas atrás de muros altos, cercas elétricas e câmeras de segurança. Até quando resistirão? Quatro estão à venda, e outra, para aluguel. Os rostos conhecidos se foram. Restaram apenas duas famílias que ainda reconheço.

Nesse prolongamento de esquecimentos e perdas silenciosas, mantenho contato com uma nova moradora. Ela chegou pouco depois da pandemia da Covid-19, trazendo consigo uma menina de uns seis anos, a qual tratava como sobrinha. Instalou-se na calçada de uma casa de esquina, onde o sol bate forte e a sombra não há. O frondoso pé de jambo, que antes aliviava o calor, caiu numa madrugada chuvosa de fevereiro.

Hoje, a mulher é acompanhada por um menino de uns três anos. A criança enfrenta, todos os dias, os dragões da fome e da sede, brincando de sonhar acompanhado por um carrinho de plástico doado por um motorista qualquer. A garota, diz ela, está na escola. Às sete da manhã, chega mansinho. Deposita uma sacola plástica no canto do muro, tira de dentro uma garrafa pet com água e um pacote de bolacha. Senta-se sobre um pedaço de papelão. Com certa timidez, ajeita a saia ao redor das pernas, pega o menino no colo. Começa ali sua jornada de nove horas de mendicância.

Mão estendida, espera pelas moedas que caem das janelas entreabertas dos carros no sinal. Aos sábados, o apurado se traduzi em duas ou três cestas básicas. Tem aparência de uns 35 anos, mas
parece carregar muitos mais. Há três anos, ela e as crianças fazem parte da paisagem, mas são invisibilizadas.

Ninguém sabe seus nomes. Nenhum “bom dia”, nenhum “como vai?”. Nada. Os transeuntes passam e desviam o olhar. Talvez nem os enxerguem. Talvez tenham aprendido a não ver. A cena foi naturalizada. Incorporada à rotina como se fosse parte da arquitetura da rua.

Estamos nós perdendo a capacidade de sentir? Ou foi a rua que perdeu a alma? Talvez tenhamos sido nós que, aos poucos, nos desumanizamos com assustadora naturalidade.

*Suzete Nocrato

Jornalista e Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Eliomar de Lima: Sou jornalista (UFC) e radialista nascido em Fortaleza. Trabalhei por 38 anos no jornal O POVO, também na TV Cidade, TV Ceará e TV COM (Hoje TV Diário), além de ter atuado como repórter no O Estado e Tribuna do Ceará. Tenho especialização em Marketing pela UFC e várias comendas como Boticário Ferreira e Antonio Drumond, da Câmara Municipal de Fortaleza; Amigo dos Bombeiros do Ceará; e Amigo da Defensoria Pública do Ceará. Integrei equipe de reportagem premiada Esso pelo caso do Furto ao Banco Central de Fortaleza. Também assinei a Coluna do Aeroporto e a Coluna Vertical do O POVO. Fui ainda repórter da Rádio O POVO/CBN. Atualmente, sou blogueiro (blogdoeliomar.com) e falo diariamente para nove emissoras do Interior do Estado.

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