Com o título “Soberania Digital: Não Dá Mais pra Andar Descalço”, eis artigo de Mauro Oliveira, professor do IFCE, PhD em Informática (Sorbonne Universityua) e ex-secretário de Telecomunicações do Ministério das Comunicações.
(Dedicado às mulheres que, resilientes ao machismo estrutural, lutam pela Soberania deste Brasil)
Confira:
Era para ser mais uma reunião formal, daquelas que obrigam o paletó esquecido no armário a sair para tomar ar marítimo. No Palácio da Abolição, Governo do Ceará e Iracema Digital se ajeitavam em torno da mesa para discutir um assunto que não cabe em rodapé: a urgência de uma política pública de soberania digital.
Nada de firulas nem ki ki ki! Falou-se do colonialismo digital, essa sangria invisível, um país inteiro pagando, mês após mês, aplicativos MADE in LÁ FORA (será que eu vou também perder meu visto? rsrsr).
Esta nova colonização silenciosa não chega de caravelas, mas via estratégias virtuais: contratos de software com cláusulas que ninguém lê, termos de uso que escondem mais do que revelam e plataformas estrangeiras que monopolizam nossas ideias e, pior, nossos dados que … anotem aí, um dia vamos ter que pagar para acessá-los.
É o “novo ouro” escorrendo pelos cabos de fibra, tributos que evaporam para outros CEPs, uma dependência tecnológica que nos deixa expostos como porta sem trinco em rua movimentada … sábado de carnaval em Olinda.
E foi nesse palco de “inconfidentes digitais” (olha o passaporte … rsrs) que entrou, com a pontualidade cearense de quem chega “quase na hora”, Marluce Aires, jornalista, escritora, cadeirante tropical, a “dama da informática” do Ceará. Durante 20 anos, ela fez o Infobrasil acontecer, o segundo maior evento de TIC do país (só perdia para o Futurecom) quase sempre “com o pires na mão”, diante de governantes, empresários e pesquisadores “nem aí”, que não viam que tecnologia era uma questão de soberania.
Mas naquela manhã, Malu perderia algo mais simbólico que qualquer edital negado: seu sapato escarlate. Cor preta, 34, adquirido na Casa Parente (perto da Aba Fim) em dez suaves prestações, e que, por motivos insondáveis, decidiu ficar no elevador, ao sair dele em sua “Rolls-Roda turbo, freio ABS manual, ar condicionado natural e Wi-fi no grito” (rsrs).
Aí veio o momento do desespero:
“E agora, o que é que eu faço? Ligo para os bombeiros, para a NASA do Trump, para a NASAreno do Povo, para a Dona Mocinha, para o Ernesto do Cais Bar, para o Raimundo dos Queijos, para o Vinicius, meu garçom do Tocantins na Abolição (quem nunca foi lá “passou por esta vida e não viveu”)?
Como em toda boa fábula, surge um salvador da pátria, do sapato no caso (“dando no pé, dá no preço” … lembram? rsrs). Quem seria esse mestre em resgates impossíveis, um herói improvisado a encontrar e devolver o sapato à princesa descalça.
Tan tan tan tan! A história aproxima-se de seu clímax …
Eis que, de repente, ao apertarmos nervosamente o botão do elevador a procura do sapato escarlate da Malu, chega nada mais nada menos, nada mais ou menos do que ele: o Principe dos Games do longínquo Principado democrático de Bojogá. Lá, com pompa de imperador pop, reina Daniel Gularte: colecionador de raridades, mantenedor-mor de um museu de jogos plantado dentro da própria sala de estar. Entre cartuchos de Atari, jogos em K-7, TK-85, CP-500 e terminais de mainframes esquecidos pela Cobra Computadores, Sir Daniel governa com autoridade, esperança e criatividade permanente da marca Bojogá.
Sorridente, dentes clareados com ortodontia quântica inventada pelo Dr de Sílvio Ramos, vestindo um costume do “El Corte Inglés” comprado no black friday do Mercado Livre, coçando as partes com naturalidade, tal um cearense invocado fugindo pela janela ao amnhecer, ele aproxima-se da nossa Cinderela Tropical e sussurra segurando o sapato escarlate: “Princesa, esse seu é seu?”
E, numa cena digna de Casa Blanca com Daniel Bogart & Marluce Bergman, nosso Príncipe dos Games ajoelha-se diante de nossa Cinderela Tropical e, educadamente, taca-lhe o sapato escarlate perdido, para aplausos de curiosos que já faziam apostas sobre o certame.
Final feliz, risos contidos, reunião retomada. Mas, ficou a metáfora martelando nosso cox cerebral: assim como o sapato, o Ceará já perdeu muitos passos na corrida digital.
E, se não quisermos andar descalços na passarela da Inteligência Artificial, é bom largar logo o chinelo de dedo e correr, acelerar:
• Correr para erguermos infraestrutura nossa, não pagar aluguel eterno de nuvem alheia, blindar dados estratégicos antes que virem moeda barata em Wall Street. Investir em software feito aqui, com sotaque e CPF (tipo nosso PIX), e não em pacotes importados com cláusula secreta.
• Acelerar para lapidarmos talentos para implementar as ideias acima, para cravar que soberania digital precisa ser política de Estado, para que os líderes e governantes compreendam que soberania digital não é mimo de campanha, é cláusula pétrea.
Porque, no fim, soberania digital é mais que sapato certo: é vestir a coragem de quem se recusa a desfilar fantasiado de colônia, o passo firme de quem decide não rastejar, é a ousadia de subir a escada sem pedir bênção, com os olhos acima do nível do mar.
E quem carrega no peito o futuro deste país sabe: não dá mais tempo de andar descalço na avenida da Inteligência Artificial. Ou marchamos com nossos próprios sapatos, ou seremos eternos figurantes no desfile na avenida iluminada das Big Techs, e o pior … com o entusiamo dos colonizado (arre égua!)
*Mauro Oliveira
Professor do IFCE, PhD em Informática (Sorbonne University) e ex-secretário de Telecomunicações do Ministério das Comunicações.