Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Sobre amor e memória

Cynthia Rabelo no exercício de sua arte. Foto: Arquivo Pessoal

Com o título “Sobre amor e memória”, eis artigo de Cynthia Rabelo, pedagoga com especialização em contação de histórias. Atualmente morando em São Luís do Maranhão. Confira:

Minha filha mais velha sempre reclama que eu não falo muito sobre minha infância. Eu procurei justificar isso, pelo fato do pai delas sempre contar suas memórias e eu gostar de ouvi-las junto com as meninas. Também por acreditar que as minhas histórias não são tão incríveis quanto as dele, já que ele foi uma criança bastante travessa.

Hoje me peguei pensando sobre isso e percebi que minhas memórias têm vindo para mais perto de mim. Tenho lembrado das brincadeiras com meus amigos e amigas de infância. Lembrei que nossos quintais eram tão grandes, que cabiam árvores frutíferas como mapati, abiu, ingá e outras que nos emprestavam suas sombras para brincarmos de casinha, amarelinha e também aprender a andar de bicicleta, normalmente bicicleta de gente grande. No meu caso, usava um modelo chamado barra circular. Como eu sempre fui a menorzinha, colocava uma das pernas por dentro da roda, que ficava entre o guidão e o assento da bicicleta para poder pedalar.

Dia desses, falando ao telefone com a mesma filha, comentei sobre uns amigos, e ela, do outro lado da linha, disse: “você teve amigos na infância, mãe? Por que não fala deles?” Respondi: Claro que tive amigos na infância. Se até hoje faço amizades, imagina quando era criança, época que somos mais livres, sem conceitos pré estabelecidos.

E com esses questionamentos de minha filha, foi nascendo a necessidade de entender porque eu não falava sobre meu passado. Fui percebendo que em mim há histórias maturando, que o motivo do silêncio está relacionado com a memória e o tempo. Sim, até há pouco, eu era apenas a filha de minha mãe. Era ela quem me contava como fazer um banho de ervas ou um chá de alho com limão e mel, para curar gripe. E mesmo eu já sendo mãe e tendo minha própria casa, ainda era ela quem guardava a sabedoria e as histórias.

Por seu gigantismo e perenidade, a Samaúma ou Sumaúma (Ceiba pentranda) é uma das árvores mais extraordinárias da Amazônia. Sagrada para povos da antiguidade, como os maias, seu nome remete à fibra que pode ser obtida a partir de seus frutos. Minha mãe era a Samaúma da nossa família. Era pra ela que eu ligava pedindo conselhos ou perguntando qual chá seria melhor para tal dor. Era dela que eu ouvia as histórias de antes d’eu nascer; dos dias que ela ficou órfã ainda muito criança, da preparação para tornar-se freira… Mas se apaixonou pelo meu pai e largou tudo para viver seu amor. Ela me contava dos dias difíceis, mas também dos dias alegres.

Há cinco anos venho me tornando Samaúma. Só agora passo a contar as nossas memórias. Minha mãe partiu e meu pai foi diagnosticado com Alzheimer. É chegado meu momento. E percebo que o tempo é precioso para tirar dores, rancores e até a euforia. O tempo apura e nos traz consciência do que vivemos e nos faz puxar esse fio para tecer o passado com o presente, com calma e mais consciência. Agora, cabe a mim preparar o terreno para minhas filhas, dizer-lhes que é necessário calma para ter boas histórias. Foi preciso muita energia e serenidade e um pouquinho de “loucura” para viver, ver e apurar a vida. Quem sai correndo atropela as vivências, perde os detalhes, e quando vê, nem tem o que contar.

*Cynthia Rabelo

Pedagoga, com especialização em Contação de Histórias. Atualmente morando em São Luís do Maranhão.

COMPARTILHE:
Facebook
Twitter
WhatsApp
Telegram
Email

Respostas de 11

  1. Parabéns sobrinha! Que bela história…Assim é a vida…As SAMUMEIRAS velhas se vão mas deixam as sementinhas que vão se multiplicando ao longo da vida. Você é prova viva disso. E a história vai se repetindo enriquecida com novas sementinhas. Admiro você!

  2. Que lindeza esse texto da minha amiga Cinthia!!
    tão bonito esse movimento de transformação em Sumaúma e,
    a consciência ( do tempo ) do que podemos deixar como memória.
    Parabéns!

  3. Arrepiei. Que lindo texto da alma voando e virando ser que matura e cresce. Estou nessa vibe

  4. E quão gigante esta Samaúma se tornará… Quiçá será vista e apreciada por toda a floresta!!!

  5. AMEI ! AMEI MUITO ! Leve e profundo ao mesmo tempo. Eu tenho muito orgulho da minha cunhada !

  6. Que texto emocionante, real e singelo!
    Me trouxe a memória de meus longos e intensos momentos presenciais com minha amada mãe, eu sentada ao lado dela, a fazer uma pergunta e ouvir uma hora e meia de um saboroso relato onde eu geralmente vou me incluindo aos poucos. No fim, tudo é vida! Parabéns Cynthia!!!

  7. Que texto lindo!
    Tão sensível e libertador.
    Parabéns!!!

Mais Notícias