“Trabalhadores sob ameaça de duplo golpe” – Por Valdélio Muniz

Valdélio Muniz é jornalista. Foto: Divulgação

Com o título “Trabalhadores sob ameaça de duplo golpe”, eis artigo de Valdélio Muniz, jornalista. analista judiciário (TRT-7ª Região), mestre em Direito Privado (Uni7), professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Fadat e membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (Grupe/UFC). Ele aborda tema do momento: a pejotização no mercado de trabalho. 

Confira:

Sabe aquela máxima que frequentemente a gente ouve: “Além da queda, o coice”?! Pois é. Certamente muitos trabalhadores não têm se dado conta do grave risco de duplo golpe a que estão expostos com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de determinar a suspensão de todos os processos que tratem da análise de possíveis fraudes em contratações por meio da chamada pejotização ou mesmo como supostos autônomos até o julgamento de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE 1532603), que originou naquela Corte o chamado Tema 1389 (de repercussão geral).

Pois bem. O perigo oculto é bem maior do que se presume. Não se trata apenas de mais uma possível permissão genérica (e ao estilo neoliberal) do Supremo para o vale-tudo na contratação de empregados a bel prazer de cada empregador (do modo como bem preferirem) e em gravíssimo detrimento à proteção de direitos historicamente conquistados por meio de incessantes lutas coletivas. Trata-se, definitivamente, de decretar, por tabela, o fim da Justiça do Trabalho e, claro, do próprio Direito do Trabalho.

Sim, vejam só: o artigo 9º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) diz textualmente que “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. E, reparem: o artigo 3º da CLT, que apresenta o conceito legal de empregado, é muito claro ao dizer que se considera assim “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”. Frise-se: “pessoa física”.

Pois bem. Nos primórdios da formação jurídica, aprende-se que as competências de cada órgão judicial estão definidas na Constituição Federal de 1988 (sim, esta mesma, cuja missão de ser guardião pertence ao STF). O artigo 109 da CF indica as competências dos juízes federais. O artigo 124 informa que “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Em seu artigo 114, incisos I e IX, é dito que “compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho” e “outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. O artigo 121 fixa que lei complementar disporá sobre a organização e competência da Justiça Eleitoral e, neste sentido, as competências estão postas no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965, artigos 22 a 41). Já o artigo 125 da CF-88 prevê que “os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”.

Para melhor compreensão de todos(as), o próprio sítio oficial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) esclarece que “a Justiça Estadual é de competência residual, ou seja, julga matérias que não sejam da competência dos demais segmentos do Judiciário” (https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-o-que-e-justica-comum-e-a-justica-especializada/). Como se vê, do ponto de vista das competências do Judiciário, ficou tudo bem desenhado pelo constituinte. Só esqueceram de acrescentar um parágrafo para explicitar que, a rigor, a Constituição terá dito o que o STF disser (interpretar) que ela disse, mesmo quando não haja, a rigor, qualquer dúvida interpretativa real.

Daí, tem-se que, no atual contexto em que promete o Supremo decidir a quem compete analisar contratos firmados mediante pejotização (que é, em muitos casos, a contratação fraudulenta de trabalhadores/empregados por meio da exigência/imposição de abertura de firma/pessoa jurídica) ou pretensa “autonomia” (mesmo em relação com clara subordinação): se à Justiça comum ou à justiça especializada em relações de trabalho.

Alguém poderia perguntar: mas como isso tem sido analisado até hoje? E a resposta é simples: conforme previsto na distribuição de competências feita pela Constituição. Ou seja, se há indícios de fraude na relação de trabalho, com a contratação mediante exigência de abertura de uma pessoa jurídica para driblar a aplicação dos direitos trabalhistas que contemplariam o contratado ou sobre uma forma autonomia que não se concretiza no cumprimento cotidiano do contrato, cabe à Justiça especializada, tal qual previsto no artigo 114 da CF-88 processar e julgar o caso. Entendendo ela que não há indício real de fraude (como vício de vontade ou coação), uma vez reconhecida a licitude da contratação como prestação de serviços entre “empresas” ou entre uma empresa e um trabalhador verdadeiramente autônomo, regulada pelo Código Civil (em vez de relação de emprego), é declarada a incompetência material (isto é, quanto à matéria/objeto da ação) e remetido o processo à Justiça comum (geralmente estadual, salvo se presente interesse da União que justifique o envio à Justiça comum federal).

Portanto, vê-se que, a rigor, não haveria sequer qualquer necessidade de discussão acerca de tal competência no âmbito do STF, que já dispõe de tantas outras matérias para análise, se não fosse o real interesse de fortes setores econômicos (apoiados incondicionalmente por magistrados afinadíssimos às ideias liberais e pouco preocupados aos destinos dos direitos sociais trabalhistas) em decretar o fim da Justiça do Trabalho.

Sim, porque se, ao final, o STF inverter uma competência residual e indicar (como precedente jurisprudencial qualificado, de repercussão geral) que todo e qualquer processo em que o trabalhador cogite do reconhecimento de vínculo empregatício decorrente de fraude em contratação mascarada por uma relação pejotizada ou autônoma seja iniciado na Justiça comum e, tão somente após assim reconhecida por ela, seja encaminhada à Justiça especializada, será um grave esvaziamento das funções institucionais (e constitucionais) da Justiça Trabalhista.

Não é segredo de ninguém que a vastidão temática de conflitos tratados na Justiça comum (civis, penais, familiares, consumeristas, ambientais, moralidade administrativa etc) tem sido uma das causas de um abarrotamento de processos que desafia a gestão dos Tribunais de Justiça com reflexo claramente perceptível na lentidão das tramitações que, por muitas vezes, contribui para despertar o sentimento de injustiça, mesmo quando, tardiamente, se obtém a decisão que se esperava justa. É para lá, então, que poderão ser encaminhadas pelo Supremo todas estas ações hoje a cargo da Justiça do Trabalho. E o tão alardeado “jurisdicionado” que se entregue à própria sorte. Esse risco precisa ser conhecido por todos. E a sociedade deve discutir o problema e agir antes que seja tarde demais.

Muitos trabalhadores já são golpeados quando forçados, pela necessidade econômica e pela condição imposta para contratação, à abertura involuntária de “empresas” (que jamais desejaram ter) e, como se não bastasse, ainda poderão ser impedidos, em breve, de buscar a reparação devida na Justiça do Trabalho, caso o STF retire desta a competência que muito bem tem exercido até agora (para tristeza, frise-se, não de todos, mas apenas de maus empresários).

*Valdélio Muniz

jornalista. analista judiciário (TRT-7ª Região), mestre em Direito Privado (Uni7), professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na Fadat e membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (Grupe/UFC).

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