“A verdadeira amizade é o único sentimento que prescinde da presença do outro. Nem mesmo a morte consegue desfazer laços de amizade”, aponta o jornalista e poeta Barros Alves
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O editor e escritor Francisco Bezerra, pelos amigos carinhosamente tratado por Bezerrinha, é credor da minha amizade e, por tabela, da minha conterraneidade. Conterraneidade mombacense de Paes de Andrade, que também é minha. Recentemente ele editou uma obra biográfica sobre o grande líder político de Mombaça no século XX, escrita pelo poeta e historiador Juarez Leitão, lançada em grandioso evento realizado no Ideal Clube de Fortaleza. Foi uma noite em a alegria bailava em todos os olhares. Uma festa celebrativa da amizade, em que pontificaram Roberto Pessoa e Lúcio Alcântara, aniversariantes neste mês de maio; e também Paes de Andrade, a quem os anjos abraçam nos Céus com a nossa devida procuração, mas continua com vida perene na memória dos amigos. Paes sempre presente entre nós em razão da obra produzida em vida. Como ensinava o niilista Jorge Luís Borges, a imortalidade está contida tão-somente nas ações protagonizadas pelos seres humanos. Segundo El Brujo, poeta maior que a Argentina deu ao mundo, para além desta vida, somente o Nada.
É o mesmo Jorge Luís Borges, quem dizia que a amizade é a única forma de amor que não comporta ciúmes. E que a verdadeira amizade é o único sentimento que prescinde da presença do outro. Nem mesmo a morte consegue desfazer laços de amizade. Impõe-se, pois, que eu diga, que o Ideal Clube não cabia de tantos convidados para a festa aniversária de Roberto Pessoa, Lúcio Alcântara e do livro biográfico sobre o Paes, em razão de um gesto de imorredoura amizade. Um gesto que se alteia como resgate memorial da vida e da obra de um homem cujo nome se inscreve entre os mais representativos na história contemporânea do Ceará, o mombacense Antônio Paes de Andrade, caminheiro de muitas léguas tiranas, cidadão de nordestinadas pátrias, sempre grávido de sertanidade. O autor desse gesto que significa plenitude de amizade é Roberto Pessoa, cujo protagonismo nos embates da Política jamais o subjugaram à baixeza das rixas partidárias; pelo contrário, a ação que desenvolve no terreno ora pedregoso, ora pantanoso da seara partidária, atividade insalubre e desgastante, às vezes insana, tem, paradoxalmente, conduzido Roberto Pessoa a um patamar de respeitabilidade somente concedido a poucos na história da política cearense. Entre esses poucos incluo também, sem favor, o Dr. Lúcio Alcântara.
De par com o exercício da atividade política enquanto arte de gerir a coisa pública em favor do bem-estar do povo, inscrevo Roberto Pessoa “summa cum laude” entre os pouquíssimos mecenas existentes no Estado do Ceará. Diria mesmo que neste mister Roberto Pessoa é avis rara. Portanto, os intelectuais e produtores culturais do Ceará devem-lhe hosanas e sinceros agradecimentos.
Mas, Paes de Andrade tinha outro grande amigo e comensal de sua mesa farta, que também quis honrar-lhe a memória neste ano centenário de nascimento do ilustre filho de Mombaça. Esse amigo do Paes é o meu amigo Bezerrinha, o qual, também ele, num gesto de amizade que vai além da vida, resolveu prestar uma significativa e bela homenagem ao amigo Paes de Andrade, por entender ter sido o nosso conterrâneo, um audaz timoneiro que singrou mares encapelados em muitas travessias políticas, a conduzir o barco do ideal democrático com destemor e em segurança.
Primeiro cumpre afirmar que Bezerrinha, o cronista e o contista atento aos detalhes do cotidiano, a capturar a essência das pessoas e situações, a explorar com desenvoltura diferentes temas e perspectivas, escreve com habilidade narrativa e um estilo próprio, que o torna uma voz autêntica na contação de histórias reais ou frutos de sua imaginação criadora. Com elevada sensibilidade para captar emoções, sentimentos e impressões do mundo ao seu redor; e também do que vai além do circunstante, Bezerrinha conhece a língua, sua estrutura, ritmo e nuances, sabendo empregar esses instrumentos epistemológicos da linguística na Poesia que intenta construir e a constrói não apenas morfologicamente, mas sabe levantar um edifício poético com o coração e com a alma.
Sem medo de formas equivocadamente tidas como ultrapassadas, certamente movido pelo imperativo da saudade e da amizade, Bezerrinha foi buscar na Poesia épica a expressão do seu bem-querer por aquele que ele tem como um herói, o amigo Paes de Andrade. Não me cumpre aqui discorrer sobre o conceito de herói nem sobre as muitas visões críticas elaboradas em torno da epopeia, que nasce com Homero e Vergílio e se estende aos dias atuais, passando pela maior de todos os cantares épicos em Língua Portuguesa, a epopeia lusitana registrada n’OS LUSÍADAS, de Luís de Camões.
Constato prazerosamente o esforço poético do Bezerrinha, a recolher na história recente do Brasil os fatos que marcaram a biografia de Paes de Andrade como um cavaleiro andante da democracia, em momentos de escuridão para as liberdades públicas. Um Paes que certamente nos dias que correm se altearia mais uma vez como paladino das boas práticas políticas e, sobretudo, uma voz a entoar o refrão republicano: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós.”
O leitor dos versos contidos nA EPOPEIA DE PAES DE ANDRADE, O INTERNÚNCIO DA DEMOCRACIA, verá um depoimento poético que revela uma admiração profunda por esse devassador dos sertões, cujo sangue mombacense aflorou em todos os momentos da vida, a conceder-lhe o fogo para incendiar os corações nas lutas em favor do seu povo. Atendo-se embevecido ao seu herói, o poeta Bezerrinha, no entanto, se coloca em face das realidades que transcendem o mundo pessoal da personagem e, destarte, suscita o interesse pelos enigmas da comunidade e da humanidade, até porque a vida de Paes de Andrade foi toda ela vestida de humanismos no sentido lato que o termo possa abarcar.
Um dos objetivos do poema épico é agigantar as qualidades e virtudes do homenageado. Neste sentido, Bezerrinha conseguiu desempenhar seu papel com louvor e ele próprio, poeta lírico que conserva a liberdade dos versos, se imiscui e se envolve com a personagem, com os fatos, com o tempo dos acontecimentos. O poeta participa efetivamente do estado emotivo da personagem heroicizada. Essa condição alteia o protagonista do poema e valida o tema na abordagem dos duelos políticos do tempo rememorado.
Enfim, Bezerrinha soube captar em Paes de Andrade o espírito de Mombaça, terra onde no cenário cotidiano os conflitos são inevitáveis, hereditários. E vir ao mundo naquela gleba sertaneja é pertencer a um grupo fadado pela Natureza a combater outro grupo. Com efeito, a nossa Mombaça, a Mombaça minha e do Paes, ainda conserva o mesmo gênio telúrico de outros tempos.
É certo que, por agora, o gênio tem sido amainado por costumes globalizados de delicadeza feminil ditada pelo contraproducente “politicamente correto”. Mas, quem vai a Mombaça, aqui e ali, ainda consegue enxergar pairando no ar o mesmo sentido de honra impresso a ferro e fogo na mentalidade imensamente sertaneja e profundamente máscula daquela gente; aquele sentido cantado por outro mombacense ilustre, o intelectual Francisco Alves de Andrade e Castro, para nós outros simplesmente o Dr. Fransquim, irmão de Paes. No poema SAGA DOS SERTÕES DE MOMBAÇA, como que ouvimos a mesma voz em que o Bezerrinha também ousou entoar seu canto epopeico:
Mombaça de Pedro Martins de Melo,
altivo, mas sem arrogância,
falando forte, solidário,
e à frente de seus parentes unidos,
ditando a um tenente da Polícia,
que a família repelia a afronta.
Dobrasse a esquina e deixasse a cidade!
E noutros versos da épica do Dr. Fransquim se conta a atitude do Coronel José Aderaldo de Aquino:
Na subversão de Juazeiro,
a sua casa e a do mano Ernesto,
dizem que foram as únicas
que não levantaram
a bandeira vermelha adesista
da revolução.
Urge, por final, dizer que o jornalista, o cronista, o contista Bezerrinha, por força da amizade com Paes de Andrade, se fez bardo épico. Escreveu a crônica poética das épicas façanhas do amigo. Soube ser tendencioso a serviço da amizade, que é o bem maior; soube triunfar ao som das trombetas da cavalaria do seu herói, vitorioso na fabulação do seu poema. Soube dar-lhe a glória imorredoura, como só os poetas sabem fazê-lo, porque contam com o concurso dos deuses e a fascinação dos homens, para a perpetuação na História.
Barros Alves é jornalista e poeta