“Diálogo entre dois caras que vivem na minha cabeça”, aponta o jornalista Alex Solnik
Confira:
Não sei se com vocês é assim (sempre fico na dúvida se devo me dirigir a “você” ou “vocês”), mas dentro da minha cabeça vivem dois caras que conversam o tempo todo, trocam ideias e às vezes sopapos, geralmente discordam um do outro, e só param quando durmo, até onde eu sei, e hoje um desses caras disse pro outro:
“Hoje acordei com a estranha sensação de que eu era mais feliz na ditadura”!
“Você ficou louco” retorquiu o outro, “ninguém pode ser feliz na ditadura, é o regime da força, da delação, do medo, da censura, é o pior regime que existe. Você e milhares foram presos na ditadura, torturados e assassinados”!
“Sim, eu sei, mas o que eu quero dizer por felicidade é que naquele tempo 99% dos jovens eram contra a ditadura, talvez a rara exceção, em São Paulo, fossem os celerados do Comando de Caça aos Comunistas, mas eram poucos, cabiam num barzinho dos Jardins, onde se reuniam para planejar ataques covardes como o do Teatro Ruth Escobar, e também com exceção daquele bando de garotos imberbes que desfilavam com estandartes vermelhos no Viaduto do Chá, da Tradição, Família e Propriedade, tirante esses, todos éramos contra a ditadura, as famílias não se dividiam entre quem era contra e a favor da ditadura, a ditadura estava em Brasília, mas nós éramos unidos, tínhamos um objetivo, derrubar a ditadura, e ninguém precisava ser petista ou comunista para ser de esquerda, ninguém precisava mostrar a carteirinha, tínhamos um horizonte, o fim da ditadura, enquanto hoje, em plena democracia, já são quarenta anos de regime democrático, tem muita gente a favor da ditadura, sobretudo muitos jovens, que são o futuro do país, apoiam quem tentou implantar uma nova ditadura, as famílias estão divididas, amigos rompem relações, há troca de tiros na internet e na vida real, a direita ataca a imprensa e a esquerda ataca a imprensa, naquele tempo, não, as pessoas não atacavam a “grande imprensa”, que estava sob censura, e que na primeira hora apoiou a ditadura, mas um ano depois percebeu que foi um tiro no pé, a matéria prima dos jornais são as notícias, quando a censura corta as notícias o jornal fica mais pobre, caem as vendas, as tiragens, os anúncios, as pessoas tinham noção de que a imprensa era essencial na luta contra a ditadura, a gente não vivia nesse clima insuportável em que uns vigiam os deslizes dos outros, em que apontar o dedo dá likes e dólares, e contrariar o que pensa a maioria é assinar um atestado de óbito, em que gestos nazistas são criticados, mas atos nazistas, exaltados, a direita imita a esquerda e a esquerda imita a direita, e não há sinais de que isso vá parar, ao contrário, de eleição em eleição, há uma escalada de intolerância, de ódio, entre pessoas do mesmo país, o que há hoje, e não havia antes da polarização, é um clima de guerra civil que não ajuda em nada ao que mais interessa a todos, uma vida próspera, sem sobressaltos, sem faltar o essencial (não é só comida), um país dinâmico, em sintonia com o mundo tecnológico, preocupado com os efeitos do clima, uma economia aberta e desburocratizada, todas as crianças na escola, professores bem pagos, salários melhores, enquanto o essencial continua relegado para amanhã, o tiroteio continua, dia e noite, tiroteio de mentiras, tiroteio de narrativas e tiroteio de verdade”.
“Você acordou com o pé esquerdo” disse o outro “qualquer democracia, por mais mequetrefe que seja, é melhor que qualquer ditadura”.
“Também acho. Estou com você. Não quero a ditadura. Tenho nojo e ódio da ditadura. O que me preocupa é a quantidade de gente, na direita e na esquerda, que não tem nem nojo nem ódio da ditadura, desde que seja a sua. Naquele tempo havia luz no fim do túnel. Hoje há um túnel no fim da luz”.
Alex Solnik é jornalista e autor de “O dia em que conheci Brilhante Ustra” (Geração Editorial)